1-Longa Novela Vida Afora- Um Conto
(Inspirado em “Eles Não Usam Black-Tie” de Gianfrancesco Guarnieri, filmado por Leon Hirszman e numa História Real de bastidores da televisão)
Rio de Janeiro, anos 80
“Passei toda tarde ensaiando, ensaiando
essa vontade de ser ator acaba me matando.
São quase oito horas da noite e eu nesse táxi.
Que trânsito horrível meu Deus!
E Luzia e Luzia?
Estou tão cansado, mas disse que ia
Luzia Luluza está lá me esperando...”
É engraçado como esta música do Gil me vem agora à mente. É tudo igual, mas infelizmente não tem nenhuma Luzia me esperando. Muito pelo contrário. A gravação desta novela neste horário maluco é demais pra mim! Mas o que se há de fazer quando o “astro principal” assim o exige, devido à sua precária disponibilidade, dado seu prestígio e compromissos, com a agenda cheia? Mas enquanto esse táxi-ratinho não desvenda os labirintos dessa cidade até chegar no estúdio, vamos ver se eu decorei tudo direitinho:
(Eu saio do quarto, passo pela sala e o meu tio me interpela).
- Já vai sair de novo? A esta hora?
- Vou sim, por quê? Quer que lhe traga alguma coisa? Não sei se vai adiantar porque eu vou voltar muito tarde!
- Você sabe muito bem rapaz que eu não quero nada! (gagueja um pouco). Isto é ... Eu queria é saber um pouco mais da sua vida, dos seus planos, de como vai a faculdade. Será que estou investindo uma fortuna à toa?
- Olha aqui tio. Não é porque eu estou na sua casa de favor, o senhor me pagando os estudos que eu vou engolir tudo direitinho, bem quietinho. Preste atenção, eu sei muito bem que depois que papai morreu o senhor não tem ajudado a gente por generosidade não. Eu sei bem que o senhor sempre esteve interessado na mamãe! Agora é sua última cartada para reconquistá-la.
- Rapazinho, não se atreva!
- É isso mesmo! O senhor fica aqui nesta casa dirigindo tudo e todos, sempre impondo a sua vontade, algumas vezes de maneira sutil, outras nem se dá ao trabalho de disfarçar: é grosso mesmo! Não tem assunto em que o senhor não faça pose de sabe-tudo e comece a ditar regras. Diz as maiores besteiras sem o menor pudor. Mente. Sim muitas vezes mente, só para ter a última palavra. O senhor quer que a vida das pessoas desta casa gire sempre em seu entorno. Somos todos seus empregados: a tia, os primos, todos. A tia... coitada! Se ela soubesse das suas intenções! Estou farto dos horários rígidos, de termos de esperá-lo sempre. A sua catequese me enoja. Essa sua postura séria e seus sermões são puro engodo. “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço!” - esse bem poderia ser o seu epitáfio! Toda essa fachada é o que o senhor gostaria de ser, mas não é!
- Arrume suas coisas e vá embora desta casa já, seu moleque!
(Fim do Capítulo – Letreiros finais- Comercial)
Esse texto assim me assusta, o autor não tinha colocado nunca falas tão violentas assim na minha boca. Decorar essas coisas não é fácil! Às vezes é como memorizar listas telefônicas, de tão insípidos que estão os textos. No teatro, com um bom texto, a gente nem decora, simplesmente os personagens dizem tais e tais coisas porque não poderiam dizer outras. Eles têm vida própria, de tal modo que dizem o que deveriam dizer mesmo. Mas esse rapazinho que eu vou interpretar está dizendo ao tio o que diria mesmo? Meu personagem já tinha dado mostras de rebeldia, mas nunca a esse ponto. O meu tio na novela é um bocado chato, mas não chega a tanto (ou chega?). O que estaria acontecendo? Por que esquentar o capítulo assim?
Esse autor está maluco! Não entendo essa guinada! Esse “será que estou investindo uma fortuna à toa?”, me parece muito forte. Não é bem assim que as coisas tinham se passado até então. O meu personagem sempre apelou para o sentimentalismo com o velho (que não é tão velho assim, pois afinal ainda trata-se de um “galã”...), sempre foi a corda com a caçamba, a vontade de corromper com o consentimento em ser corrompido!
Pensando bem, deixando de lado um pouco a generosidade, bem que esse “meu tio” merecia ouvir essas coisas. É cruel eu sei, mas essas falas não deixam de ter um certo sentido. Mas por que o autor agora, depois de manter o conflito em banho-maria, resolveu abrir o jogo e escancarar com o meu personagem...?
Sim, mas como que eu não pensei nisso antes...? É óbvio! O Benedito Gomes Silva está é querendo se vingar do Oscar Fernandes e não do personagem que ele faz! Mas é claro! E eu estou sendo usado!... Eu sei que o Oscar é realmente um grandessíssimo chato! Um autêntico “mala”! É um “galã” já um tanto démodé que a emissora ainda insiste em impingir aos telespectadores como grande protagonista. Ele quer fazer do personagem dele um professor de vida, custe o que custar. Está sempre exigindo mudanças no texto! O autor vive remendando as suas falas. Não há dúvidas! O autor preparou-lhe uma armadilha: colocou na minha boca tudo o que gostaria de dizer a ele! Mas eu me presto a isto?
Será que coisas desse tipo já não aconteceram antes e eu nem me dei conta? Realmente eu também não simpatizo com o Oscar Fernandes. Eu soube que chegou a dizer ao diretor e ao Benedito que eu era muito velho pra fazer o sobrinho dele. Queria um rapaz mais novo, pois sim... Mas eu não estou a fim de sacaneá-lo. Na hora da gravação, eu vou improvisar e suavizar bastante o texto...Mas não vai ser fácil! O pessoal vai me mandar embora por indisciplina e eu não vou ter argumentos! Se contar tudo que sei vão dizer que eu estou louco: que é tudo paranoia minha. Como realmente provar essa maldade? O ator-estrela me detesta (nunca dei pelota para cantadas suas). Não sei se vai compreender, que o estaria ajudando. Talvez até gostaria que tudo passasse despercebido. Provavelmente se ofenderia com a humilhação desvendada, posta às claras, perante todos. O feitiço vai se voltar contra mim!
Aconteça o que acontecer, eu vou largar tudo e aceitar o convite que me fizeram para trabalhar numa peça! Querem que eu faça o filho de um operário que entra em conflito com o pai porque não está disposto a lutar na vida como este tem lutado até então, ou seja, não aguenta o jogo de paciência das lutas no sindicato, a organização das greves, etc. O meu personagem não está a fim de ficar ali restrito, casar, ter mulher, filhinhos que devem crescer e depois continuar a luta dele e dos seus. Meu personagem tem medo de esmorecer naquele ambiente desolador e se tornar “fútil, cotidiano, tributável”. Ele quer voos mais amplos!
Eu me identifico muito com esse personagem. A peça é muito humana, bem escrita, destrincha com habilidade alguns mecanismos de perpetuação do domínio dos poderosos, os colegas com os quais trabalharia são ótimos, mas sei lá...A peça faz que discute imparcialmente a questão, mas ela é clara, fechada: ele deveria é ficar com a família, a mulherzinha combativa, ajudando-os a separar, pacientemente, o joio do trigo, o bem do mal como fica bem claro na metáfora de separar pacientemente numa mesa, os feijões ruins e podres dos bons. Fazer este personagem desta maneira não seria também trair a mim mesmo? E no teatro ganho tão pouco...
Não sei...A história do feijão talvez também seja um grande ato de coragem e resistência. Mas será que estou apto a sentir o que esse operário sente? Será que eu, um filho da classe média carioca urbana, simplesmente por ter uma longa experiência com o ritmo industrial das novelas, o reino da pressa e do corre-corre, a linha de montagem dos sentimentos humanos, esteja habilitado a sentir esse operário?
Pra mim eles deveriam é fazer greve ad infinitum. Nunca mais voltar aquela atividade altamente desgastante, repetitiva, com um mínimo de criatividade, pois sem ser criativo ninguém pode ser feliz. Não há dinheiro que pague! O diabo cobra a alma a todo instante!
Mas esse congestionamento em que acabamos entrando já está se resolvendo e o táxi daqui a não muito tempo chega ao estúdio da emissora. Sinto um frio no estômago! Acho que é a primeira vez que alguém fica triste por ter saído de um engarrafamento... Será que há alguma Luzia Luluza Luz me esperando neste fim de túnel?
Nelson Rodrigues de Souza
Ps. Conto originalmente publicado no meu Blog anterior, aqui com correções, acréscimos e atualizações.
2- Links Associados
2-1 https://www.youtube.com/watch?v=Uzl2K1bDRog
Eles não Usam Black-tie – Filme Completo
Brasil, 1981.
Direção de Leon Hirszman
Baseado na peça teatral de Gianfrancesco Guarnieri
Sinopse: Ano de 1980, um dos últimos da ditadura militar no Brasil. Em São Paulo, a greve dos operários se prepara, dividindo os sindicalistas mais lúcidos e calculistas e os mais ansiosos e impulsivos. Ao mesmo tempo em que a luta se desenvolve, Tião -- filho de Otávio, sindicalista veterano marcado pela polícia -- e sua namorada, Maria, tomam a decisão de se casar. Temendo que lhe aconteça o mesmo que ao pai, Tião nem pensa em ficar do lado dos grevistas, hesitando mesmo em ficar do lado da empresa.
Elenco: Gianfracesco Guarnieri, Fernanda Montenegro, Carlos Aberto Riccelli, Bete Mendes, Mílton Gonçalves, Francisco Milani, Anselmo Vasconcelos...
Curiosidade: Participação de Fernando Ramos da Silva, que representou o Pixote, mais ou menos na mesma época.
2.2 https://www.youtube.com/watch?v=1oXkdWAhLKc
Gilberto Gil - "Luzia Luluza" - Gilberto Gil (1968)
Faixa “Luzia Luluza” (Gilberto Gil), do álbum “Gilberto Gil” - 1968
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