sábado, 2 de julho de 2022

“Medos Privados em Lugares Públicos” (França/Itália/2006) de Alain Resnais - Deus no Paraíso Lá em Cima e Seres Queimando Por Dentro no Inferno Aqui Embaixo

“Medos Privados em Lugares Públicos” (França/Itália/2006) de Alain Resnais 




1- Deus no Paraíso Lá em Cima e Seres Queimando Por Dentro no Inferno Aqui Embaixo 

Em 3 de junho de 2022 Alain Resnais completaria 100 anos de vida. De qualquer forma viveu bastante criativo para sua idade (92 anos) e morreu pouco tempo depois de apresentar “Amar, Beber e Cantar” (2014) no Festival de Berlim, onde ganhou o Prêmio Alfred Bauer e o Prêmio FIPRESCI, dado por Associação de Críticos, presentes em todos os festivais importantes. 

Este texto, centrado em “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006), seu maior sucesso de público no Brasil, é uma homenagem a ele que continua vivíssimo através de sua riquíssima filmografia.

Alain Resnais é dentre os cineastas que conheço da História do Cinema, aquele que melhor conjuga cerebralismo com emoção. Ambos os elementos estão presentes de forma intensa e altamente equilibrada em seus filmes, sem que uma vertente ofusque a outra. Isto tem resultado em filmes mais ou então menos difíceis, onde temas como tempo, memória, imaginação, criação, vida, morte e solidão, etc... são tratados com grandeza rara. Nos últimos filmes há uma tendência à maior comunicabilidade. Mas depois de seus célebres curtas-metragens, mostrando-se um mestre no formato, tais como “Van Gogh” (1948), "Paul Gaughin" ( 1950), “Guernica” (1950), “As Estátuas Também Morrem (1953), “Noite e Neblina”(1956), “Toda Memória do Mundo”(1956), “O Canto do Estireno (1959), sua estreia num longa-metragem em 1959 resultou num dos mais belos enigmas do Cinema.








Baseado num roteiro de Marguerite Duras, em “Hiroshima, Meu Amor” (1959), no encontro entre um arquiteto japonês e uma atriz francesa em Hiroshima, com sucessivos flashbacks das consequências da paixão dela por um soldado alemão em Nevers, nos é levantada a questão de que precisamos esquecer a bomba lançada em Hiroshima e a guerra de modo geral, para podermos continuar vivendo. Mas ao mesmo tempo não podemos esquecer o que aconteceu para que isto não se repita. Esquecer e não esquecer, eis a questão. 

E quando temos traumas pessoais que soam como traumas de guerra? Como esquecer? Como lidar? 

Alain Resnais no Tempo da Nouvelle Vague 






Um enigma ainda maior é o filme seguinte, “O Ano Passado em Marienbad” (1960), com roteiro de Alain Robbe-Grillet, um dos papas do noveau-roman francês. Aqui com vertiginosos movimentos de câmera, com encantatório uso de voz em off, com peso literário belíssimo, num luxuoso e enorme hotel, um homem e uma mulher casada se encontram e ela não sabe se já se conheceram ou não o ano passado, o que ele afirma. Isto é uma sinopse que diz muito pouco sobre o filme. Seu impacto visual é extraordinário, sua montagem é maravilhosa e se um filme tem sempre múltiplas interpretações, este aqui tem infinitas. Pode ser revisto sempre que novos significantes e significados se imporão. É um mistério permanente, onde há até quem faça interpretações de ordem espiritualista. O ano passado seria outra vida.... 









 “Amores Parisienses” (1997), ao seu modo, repercute no filme aqui em questão que é “Medos Privados em Lugares Públicos” (França/Itália 2006). O primeiro, numa experiência singular, como é de hábito em Resnais, escuda-se em canções populares que são cantadas no original (mesmo personagens femininos aparecem com vozes masculinas e vice-versa), de uma forma a sintetizar seus sentimentos. Há uma ciranda formada pelos personagens, num tom graciosamente melancólico e esta estrutura repete-se aqui no filme que mais nos importa agora. 




Se tivermos que reduzir “Medos Privados em Lugares Públicos” a um único tema primordial é certamente a solidão do homem urbano contemporâneo. Resnais ao mesmo tempo em que se solidariza com seus personagens, tratando-os com ternura, os olha um tanto à distância. “Comparo o filme a uma teia de aranha, onde insetos ficam presos isoladamente, mas todos se mexem juntos ao menor movimento da teia” - sintetiza o diretor. 





Charlotte (Sabine Azéma) e Thierry (André Dussollier) trabalham numa imobiliária. Thierry vive com sua irmã bem mais nova, Gaëlle (Isabelle Carré), que está ávida por encontros amorosos que programa por sites e anúncios, sem sucesso. Dan (Lambert Wilson) é um ex-militar desempregado, expurgado da corporação (por razões que não ficam claras), que não procura emprego, vive com Nicole (Laura Morante) e se embriaga no hotel onde trabalha o barman Lionel (Pierre Ardit), seu confidente. Thierry procura um apartamento que agrade Nicole, onde ela pretende morar com Dan, mas quer um escritório para ele, mesmo sem trabalho à vista, que não procura. Charlotte tem um outro trabalho como enfermeira do pai de Lionel (voz em off de Claude Rich) do qual vemos apenas os pés, um velho bastante ranzinza e intolerante. Charlotte ao mesmo tempo em que se mostra bastante religiosa, participa de fantasias eróticas fetichistas que transmite por gravação em vídeo ao seu colega Thierry, lhe perturbando o desejo e a percepção. E vai usar este dom para acalmar o pai de Lionel. Dan separa-se de Nicole, por um tempo, num acordo mútuo e acaba conhecendo Gaëlle por anúncio. Assim a teia de aranha está formada. 





O filme é segmentado em várias sequências que não negam a origem teatral da trama, sendo que as tênues separações são feitas por uma onipresente neve caindo, fazendo as vezes de fade in e fade out, num efeito belíssimo que ressalta a frieza que se instala nos corações solitários (É interessante lembrar que na França o filme ganhou o título “Couers”. Aqui prevaleceu o nome original da peça, base do filme, que é bem mais instigante). 

Num dos mais belos momentos do filme, num encontro de confissões entre Lionel e Charlotte, parece nevar no apartamento. Suas mãos sobre a mesa são cobertas de neve. Os dois manifestam suas visões da religiosidade. Lionel gostaria de ter a fé que ela tem, mas para ele Deus está no Paraíso enquanto os seres humanos estão queimando no Inferno aqui embaixo. Para Charlotte o Inferno está dentro das pessoas, manifestando-se pelas tentações. Pierre Ardit e Sabine Azéma, atores fetiches de Resnais, estão soberbos, como de hábito nos filmes de Resnais, com quem tem sempre grande identificação, dentro de um elenco bastante equilibrado e muito bem dirigido. 

O Bar do Hotel, de Encontros e Desencontros




Os enquadramentos também se mostram belos e engenhosos como é habito em Resnais. Não é à toa que o filme ganhou o prêmio de melhor direção para Resnais no Festival de Veneza de 2006, um Leão de Prata. 



“Medos Privados em Lugares Públicos” é baseado em uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn que também inspirou os extraordinários e pouco vistos no Brasil, por um péssimo lançamento, “Smoking/ No Smoking “ (1993), um admirável tour de force de Pierre e Sabine, onde eles interpretam vários papéis, num ensaio sobre a implacabilidade do acaso, como tema mais presente. O ato de aceitar ou não um cigarro pode determinar o destino dos personagens, gerando dois filmes com a mesma estrutura, mas distintos. Os filmes, chamados de dupla-metragem, chegam ao requinte de abordar diferentes desenvolvimentos para uma tomada de decisão (um casal tirar ou não tirar férias tem profundas consequências na vida dos protagonistas). Duas alternativas se apresentam e se desdobram em mais duas, criando assim uma árvore e seus ramos, com o destino humano visto em várias de suas nuances e possibilidades. 













Alain Resnais voltaria a um texto base de Alan Ayckbourn em “Amar, Beber e Cantar” (2014), confirmando seu gosto pelo autor e o desafio de fazer Cinema com o seu Teatro, num jogo de remeter a este sem perder a essência da linguagem cinematográfica, algo que foi feito com outros autores como em “Melô” (1986) por exemplo.










Alain Resnais e sua mulher Sabine Azéma no Festival de Berlim 2014.  

Alan Resnais no lançamento de “Amor à Morte” (1984) se definiu como um ateu místico. Assim seus filmes mesmo que bem fincados no real carregam sempre uma aura de mistério. Um dos mais fabulosos é “Providence” (1976), o mais belo e complexo retrato que conheço no Cinema, do processo criativo de um artista, no caso um escritor, com soberba atuação de Sir John Gielgud, que se inspira em histórias reais e imaginárias sobre sua família.







Alain Resnais dirige Ellen Burstyn em "Providence"

“Meu Tio da América” (1980) através de teorias do biólogo Henri Laborit procura explicar o comportamento de René (Gérard Depardie) que sai do meio rural para se tornar um executivo e em sua luta por manter cargos desenvolve até gastrite; de Janine (Nicole Garcia) que deixa a família proletária para se tornar atriz e se envolve com Jean (Jean Le Gall), um escritor bem-sucedido, numa relação sujeita a chuvas e trovoadas. Reações de medo, pânico, raiva etc... dos ratinhos de laboratório em diferentes experimentos, vão ter correspondência com o comportamento dos personagens. Mas não é uma identificação automática. Os seres tem componentes de mistério em seus comportamentos que a ciência não explica e temos aqui um dos Resnais mais irônicos e bem humorados de sua carreira, sem abrir mão da melancolia. Foi sua maior bilheteria na França.







 “Medos Privados em Lugares Públicos”, feito por Resnais aos 85 anos está longe das obras primas monumentais que ele já legou à História do Cinema. Mas mesmo assim, está muito acima da média do que tem nos mostrado o Cinema de modo geral. Pelo menos em relação ao que tem chegado ao Brasil. Resnais dificilmente assina seus roteiros (em “Smoking/No Smoking” é co-roteirista). O trabalho de roteirização já é uma forma de direção, dando sugestões aqui e ali. Daí o fato de apesar de contar com escritores como roteiristas, além de roteiristas propriamente ditos, não deixa de ter uma obra profundamente autoral. O tempo, a memória, imaginação, solidão, amor, morte são temas onipresentes. Em “Medos Privados em Lugares Públicos” personagens são corroídos pela memória que os persegue, mostrando o descompasso entre o que desejam e o que são, submetidos que estão ao desgaste do tempo em seus sentimentos e relações afetivas, conduzindo-os à solidão. Mesmo no Inferno em que aqui queima os seres (por dentro?), com um Deus impassível, nos mostra Resnais, há momentos tênues, onde um aconchego é possível e um fugaz Paraíso se instala, sendo a neve na mesa de “Medos Privados em Lugares Públicos” bastante emblemática. É o misticismo de Resnais que dá as caras em meio a uma visão cética, docemente ácida e melancólica da solidão (irremediável?) dos seres, num universo de relações voláteis. 

Em “Medos Privados em Lugares Públicos” a teia dos personagens sofre vários movimentos, mas eles terminam presos a ela, mudando muito pouco desde o início do filme. 

O trabalho de fotografia, figurinos e cenografia e os efeitos especiais são impecáveis. Temos muitas cores, mas mesmo assim elas não ampliam a vida dos personagens, como em filmes de Almodóvar.

Resnais como grande autor desvia-se de Carlos Drummond de Andrade: não cansa de ser moderno, sem deixar de ser eterno. 

Ps1 Um autor da importância de Alain Resnais jamais poderia ter filmes inéditos no Brasil (alguns só foram vistos em festivais, como “A Vida é Um Romance”(1983), “Melô”(1986), “Amor à Morte”(1984)). Coisas de um sistema exibidor predatório, onde um conjunto interminável de blockbusters, franquias ou não, de qualidade muitas vezes duvidosa, invade mais de 90% das salas brasileiras, sufocando não só o Cinema Brasileiro, mas o Cinema Estrangeiro que se recusa a ser deglutido como fast-food. Um problema seríssimo para ser resolvido pelo governo em suas várias instâncias, com grande atuação do Ministério da Cultura. Ao contrário do que pregam os neoliberais de carteirinha, tem de haver neste caso uma intervenção governamental no famigerado Mercado, com reserva de salas.



Ps2 Este texto foi publicado originalmente no jornal eletrônico Montblãat. Aqui o temos com cortes, acréscimos e correções. 

Ps3 “Medos Privados em Lugares Públicos” esteve em cartaz em São Paulo no complexo Belas Artes mais de três anos, só saindo com o início da pandemia. Seu sucesso motivou o lançamento de “Na Boca, Não”(2003) e “Ervas Daninhas”(2009) mas estes não caíram no gosto do público como este fenômeno a ser bastante comemorado. Nem tudo está perdido na relação exibidor&espectadores no Brasil...






Os dois últimos filmes de Alain Resnais ganharam as Telas Brasileiras: “Vocês Ainda Não Viram Nada!” (2012) e o canto de cisne “Amar, Beber e Cantar” (2014), já comentado. 
 





A Versátil Home Vídeo que já nos brindou com um excelente O Cinema de Alain Resnais, onde nos trouxe, dentre outras preciosidades "Muriel ou o Tempo de Um Retorno" (1963), nos deve um O Cinema de Alain Resnais 2 com “A Guerra Acabou” (1966), “Eu Te Amo, Eu Te Amo” (1968), “Stavisky” (1974), “Smoking/No Smoking”(1993) e “Na Boca, Não” (2003).

Um filme de Alain Resnais que não me entusiasmou e não tive oportunidade de rever é "Quero Ir Para Casa" (1989), com base num roteiro do cartunista Jules Feiffer, que colaborando com Mike Nichols nos legou a obra-prima "Ânsia de Amar" (1971) e com Alan Arkin o cáustico e brilhante "Pequenos Assassinatos" (1971). Com Alain Resnais, tão fã de quadrinhos teria dado errado?  














   

2- Fortuna Crítica e Outros Tópicos 


 Arte e Cultura Entrevista com Luiz Felipe Pondé – Medos Privados em Lugares Públicos No programa Mostra Internacional de Cinema na Cultura, apresentado por Leon Cakoff e Renata de Almeida, o filósofo e colunista Luiz Felipe Pondé fala sobre o filme Medos Privados em Lugares Públicos, de Alain Resnais. 

 Medos Privados em Lugares Públicos (2009) Trailer HD Legendado



Medos Privados em Lugares Públicos 
De: Alain Resnais 
Com: Sabine Azéma, Pierre Arditi, André Dussollier 12.07.2007 
Por Luiz Fernando Gallego 
Solidão a Dois 

Medos Privados em Lugares Públicos 
Seis corações amargurados numa Paris congelante Érico Borgo 05.07.2007, ÀS 14H00 Atualizada em 03.11.2016, ÀS 03H17 2.7

 2.7 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1307200716.htm São Paulo, sexta-feira, 13 de julho de 2007
 Crítica/"Medos Privados em Lugares Públicos" 
Surpreendente, Resnais volta a iluminar o cinema
Inácio Araujo
 Crítico da Folha Cotação: ÓTIMO 2.8

Sérgio Vaz “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006)
 Cotação: 3 estrelas/4 estrelas 

 2.9 https://www-nytimes-com.translate.goog/2007/04/13/movies/13priv.html?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto=sc ( Já traduzido. Cuide dos erros que podem ocorrer aqui e ali inerentes ao processo ) 
Paris Acredita em Lágrimas ( e Amor e Imóveis )
Manohla Dargis- New York Times 13 de abril de 2007

 2.10 Como assistir: https://www.justwatch.com/br/filme/medos-privados-em-lugares-publicos (Não está disponível para streaming, nem para compra e/ou aluguel) 



2.12 Alain Resnais Filmografia Completa   encurtador.com.br/pKOV9