sexta-feira, 1 de setembro de 2023

“Café da Manhã em Plutão” (2005) de Neil Jordan com Cilliam Murphy - "Conto de Fadas" Nos Embevece, Mas Às Vezes Claudica

 



Este texto contém spoilers, ou seja, detalhes de filmes de Neil Jordan são revelados para a análise pretendida.

Estando “Oppenheimer” de Cristopher Nolan em cartaz com bastante sucesso de público e de grande parte da crítica, achei oportuno trazer à tona este texto sobre “Café da Manhã em Plutão” (2005), que publiquei originalmente no jornal eletrônico Montblãat, do saudoso Fritz Utzeri, onde Cilliam Murphy também é protagonista, assim como foi co-protagonista em “Ventos da Liberdade” (2006) de Ken Loach, Palma de Ouro em Cannes. 





Com Nolan Cilliam fez ainda participações especiais, especialmente em “A Origem”, até chegar a este grande protagonismo atual. Aqui se encontra comentários sobre “Café da Manhã em Plutão” de 2005, com correções, cortes, acréscimos e atualizações.

Para não se esquecer temos o sarcástico e divertido “A Festa” ( 2017) de Sally Potter ( de “Orlando”) onde Cilliam Murphy é um dos adoráveis e muito engraçados desajustados, num elenco fabuloso, dentre outros filmes, com os quais, confesso, estou em falta.  


1-“Café da Manhã em Plutão” (2005) de Neil Jordan com Cilliam Murphy

"Conto de Fadas" Nos Embevece, Mas Às Vezes Claudica 



Neil Jordan é um dos grandes realizadores do cinema contemporâneo, com obras surpreendentes, originais e fortes como “A Companhia dos Lobos” (1984), “Mona Lisa”(1986),  “Nó na Garganta”(1997), “Fim de Caso” (1999), etc... Foi com o sensacional “Traídos pelo Desejo” (1992) que ele ampliou seu prestígio aliado com o ganho de um sensível público proporcionalmente ao investimento pequeno do projeto. A incrível história de um militante do IRA (Exército Republicano Irlandês) que indo a Londres numa missão de amizade para cumprir a promessa que fez a um preso negro que sua organização executou, que se apaixona pela namorada dele e não recua ao saber que ela é um travesti, desligando-se do seu grupo e sendo por ele perseguido, ganhou o mundo, sendo indicada a 5 categorias do Oscar, uma façanha na época para um filme independente dos grandes estúdios, recebendo o prêmio de melhor roteiro original. 

Neil Jordan com a celebridade adquirida chegou até a realizar uma produção de contornos mais hollywoodianos, com alto custo, “Entrevista com o Vampiro” (1994), uma obra irregular, com a vantagem mercadológica de contar com os astros Brad Pitt, Tom Cruise e Antônio Banderas como vampiros. Mas sendo obra de Jordan merece ser revista para vereditos mais consistentes, o que ainda estou por fazer. 









“Café da Manhã em Plutão” (Inglaterra/Irlanda/2005) tem pontos de contato, mas são bastante tênues, com o festejado “Traídos pelo Desejo”. Em ambos temos uma história com travestis com a violência dos embates do IRA e o exército britânico como pano de fundo. Mas o tom da narrativa destes filmes difere completamente. O filme mais recente almeja ser um conto de fadas (somente adulto?), bizarro e surreal, vertente que Jordan explorou com forte clima psicanalítico em seu sensacional “A Companhia dos Lobos” (1984), que é uma caixa de surpresas de histórias que puxam outras, com belíssima circularidade e efeitos especiais admiráveis para uma era que não a digital. 



Já seu premiado e mais consagrado filme, “Traídos Pelo Desejo”, com seus arrebatadores progressivos desdobramentos das situações e dos conflitos interiores de seus protagonistas, além de uma visão candente dos imperativos do amor e desejo, se constitui numa parábola de encenação realista, onde se lida com a suposta maior persistência de caráter do nativo em Escorpião, para o bem e para o mal... A famosa história do escorpião que quer atravessar o rio nas costas de um sapo nos é contada.


Baseado em romance de Patrick McCabe (autor também de “Nó na Garganta”/”The Butcher Boy”) com ambientação nos anos 60 e 70, “Café da Manhã em Plutão” é narrado em 36 capítulos, com títulos literários, sem nenhuma rigidez, obedecendo apenas a um charmoso bom humor que tenta captar os estados de espírito de seu protagonista.

Numa pequena cidade da Irlanda, Patrick “Kitten” Braden (em português chamado “Gata”), num trabalho minucioso, arrojado e excelente de Cilliam Murphy, quando bebê foi abandonado num cesto pela mãe na porta da casa do Padre Bernard (Liam Neeson*). É criado por uma família que não aceita a naturalidade com que vai mostrando suas inclinações homoeróticas e seu gosto pelo travestismo. Na escola católica onde estuda tem conflitos com um professor e até mesmo com o diretor que se mostra de início solidário. O pai de um amigo com síndrome de Down conta-lhe que sua mãe trabalhou como empregada na casa do padre, era a mais bela garota da cidade, se assemelhava com a estrela de cinema Mitzi Gaynor, tendo ido depois morar em Londres. 


Numa redação escolar Patrick fantasia um encontro amoroso da empregada com o padre, sendo acusado pelo professor de obscenidade. Numa caixa de dúvidas dos alunos, levanta a questão de como fazer uma operação de mudança de sexo, outro ato tido como heresia. Mal visto na escola e sem apoio na família que o acolheu, Patrick sai de casa. Uma amiga constante que terá é Charlie (Ruth Negga). Inúmeras pessoas cruzarão sua vida em situações pitorescas, surreais, ora trágicas, ora cômicas, ora tragicômicas.



Patrick envolve-se com motoqueiros cujo líder, alterado por drogas, lhe fala de uma viagem a espaços astrais onde se toma café da manhã em Plutão. Sem aderir de forma alguma a drogas e sim por temperamento, modo de enxergar o mundo, satisfeito com seus desejos, com conflitos sim é com a sociedade que o cerca, ele está sempre no clima de quem está mesmo tomando um café da manhã em Plutão e não neste nosso planeta Terra.

Patrick faz show vestido de índio (a) com Billy Hatchet (Gavin Friday), torna-se amante dele, mal entendendo as ligações que ele tem com o IRA, lidando de forma muito peculiar com armas escondidas num subsolo da casa. Ao testemunhar um atentado a bomba, ele terá reações que para si são as mais naturais, mas que lhe criarão sérios problemas.



Para Patrick, Londres, a cidade onde a mãe está, é a maior cidade do mundo e é para lá que vai à sua busca, fugindo das restrições do lugar de origem. Em Londres conhece o mágico Bertie (Stephen Rea, o ator fetiche do diretor, que faz um padre em “Ondine”/ 2009), com quem começa a trabalhar, alguém que se encanta por ele mas o explora no trabalho. Ao tentar a vida como prostituto é rechaçado pelas mulheres na atividade, agredido por um cliente, salvando-se de forma inusitada. 

Por mais percalços que encontre, não há, entretanto, nada que  faça Patrick sentir baixa autoestima. Segundo Neil Jordan sua proposta é nos mostrar “como alguém sobrevive num mundo profundamente agressivo simplesmente sendo ele mesmo”. Jordan acrescenta: “Através desta insana insistência em ver o mundo como um lugar bonito, Patrick nunca realmente perde até mesmo quando ele perde tudo”. 




No refinamento do roteiro, Jordan se lembrou muito de “Cândido” de Voltaire, o eterno otimista que acredita que vive “no melhor de todos os mundos possíveis” mesmo diante de grandes infortúnios. Patrick é o total oposto do protagonista da peça “Um Homem é um Homem” de Bertold Brecht, vista nesta época de lançamento do filme em questão, numa adaptação à era Bush/Blair pelo grupo Galpão com direção de Paulo José, onde um indivíduo comum pacato se deixa impregnar totalmente pelas sucessivas repressões de que é alvo e torna-se terrivelmente repressor, uma máquina de guerra, ironicamente nascido para matar. Jordan mais do que em política está interessado em saber “como os indivíduos trabalham com o que lhes é dado”. Num paralelo de seu filme, ambientado em momentos críticos de manifestações do IRA, com a conjuntura política atual, tem-se uma visão sua bastante intrigante e peculiar:  


“Com todas estas repugnantes ideologias tentando dizer a você, o que você deve ser, num mundo onde você pode ir a um bar e o bar pode explodir, como você vai se comportar neste mundo? Patrick faz um belo e bom trabalho”.



Mesmo entendendo-se a proposta de Neil Jordan, com a reação saudável de seu protagonista a qualquer forma de despersonalização, não importa que violências psicológicas ou físicas o mundo exterior lhe apresente, lhe imponha e ainda sem esquecer a estrutura amável de conto de fadas do filme, onde até mesmo passarinhos são cronistas das situações (chegam ao requinte de citar uma boutade de Oscar Wilde), mesmo com todas estas ideias em jogo, o roteiro incorre em alguns momentos em facilidades demais, abusando da ótica não realista que o filme se propõe. Por exemplo, Patrick sendo vítima de uma explosão dentro de uma boate, é carregado em uma maca para um hospital com as pernas feridas e num corte rápido é mostrado sendo torturado e preso como suposto terrorista, mantendo suas reações bastante lúdicas (como o tempo todo) pode ser um pouco demais. O roteiro força a barra aqui como em outras circunstâncias. Esses atalhos para emoções muito calculadas que envolvem também encontros incríveis (só explicáveis por um Deus Ex-Machina muito brincalhão), até mesmo na última sequência, diluem a força de um filme que se pretende ser um conto de fadas não ortodoxo. Em “Na Companhia dos Lobos” homens tiram camadas de peles e se transformam em lobos, mas acreditamos em tudo que nos é proposto através de uma corrente de histórias bastante atraente.


O que o filme tem de melhor, além da excelente entrega total de Cillian Murphy a seu personagem bastante difícil, não caindo de forma alguma na caricatura, que se mostra bastante feminino sem deixar que enxerguemos um homem que se traveste, numa perfeita androginia, além das líricas bizarrices e muitas evoluções surpreendentes de seu roteiro, está na excelente direção de Neil Jordan. Um diretor menos talentoso com o material com que lida Jordan, levaria ao fracasso um projeto que exige muita delicadeza e cuidado para despertar rápida empatia com os inúmeros personagens que pipocam na trama. 



Mesmo assim, pela audácia e ambição do roteiro, Jordan fica algumas vezes limitado para dar vida satisfatória ao grande número de personagens do filme. O que pode representar riqueza por um lado, com muitas peripécias cômicas, trágicas, patéticas, por outro pode ser um sinal de superficialidade. A relação de Patrick com o cantor que está envolvido com o IRA é bem construída, mas outras relações não. Até mesmo a grande amizade com Charlie se ressente de melhor elaboração. É claro que a proposta do filme é nos mostrar como o protagonista lida com um torvelinho de situações muitas vezes até limítrofes. Mas a ideia básica de Patrick como alguém sempre infenso às repressões que sofre, mantendo o bom humor, o charme, se torna às vezes um tanto fabricada. Não é algo que se compartilhe invariavelmente com o personagem o tempo todo. 

“Um Homem de Sorte” (1973), outra obra-prima de Lindsay Anderson (de “Se...”/If...”, 1968, Palma de Ouro em Cannes), com Malcolm McDowell passando por muitas desventuras, mas sempre mantendo a paciência e o humor ( quase que numa atitude/beatitude Zen-Budista), um filme parente espiritual deste em questão, é muitíssimo mais bem sucedido e verossímil dentro da inverossimilhança proposta. 



“Café da Manhã em Plutão” tem muitos momentos de encantamento: a forma como se dão os encontros com a mãe e o pai,  mesmo com artifícios (sequências especialmente tocantes e de forte originalidade); algumas reversões de expectativas que realmente são formidáveis; o trabalho de direção impecável; a trilha predominantemente com hits dos anos 70, bastante adequada à pulsação do filme e de seu protagonista, onde se destaca o uso dramático da canção “Feelings” de Morris Albert; os devaneios espirituosos de Patrick etc. Ainda que no todo se faça restrições aqui e ali, não é a qualquer momento que se vai ao cinema ver um filme de Neil Jordan. Sendo assim este café da manhã tomado na sala escura do cinema como se fosse Plutão é irrecusável. É um ótimo antídoto contra esse café da manhã amargo e indigesto na Terra que estão sempre querendo nos oferecer.


*Liam foi protagonista de “Michael Collins - O Preço da Liberdade”(1996), grande filme de Jordan, sobre o líder criador do IRA, onde o cineasta mergulhou mais fundo, explicitamente, nos conflitos da Irlanda, dominada há séculos pelos ingleses, que culminaram em um sul autônomo numa partição em 1921, sendo que foi criada a Irlanda do Norte, onde continuaram os enfrentamentos com os ingleses que reverberaram na República. Em 28 de julho de 2005, o IRA anunciou formalmente o fim de sua luta armada contra o domínio britânico na Irlanda do Norte, prometendo buscar seus caminhos por meios políticos democráticos.



Ps1 As informações sobre as propostas do diretor foram extraídas do site original do filme que era bastante alentado, incluindo até mesmo detalhes de novo projeto de Jordan, a série “Os Bórgias”. É um site do gênero muito bem projetado em seus vários aspectos, uma coisa rara, quando deveria ser a regra: http://www.sonyclassics.com/breakfastonpluto/ ( Infelizmente não está mais disponível )

Ps2 Uma das “Fabulas Fabulosas” de Millôr Fernandes, que faria 100 anos neste 2023, explica um tanto os problemas de roteiro que “Café da Manhã em Plutão” tem e também “Ondine” (2009) do mesmo Jordan, onde se pretende a encenação do mágico com forma realista ao fim e ao cabo.

Um Leão e um Ratinho foram a um restaurante. O garçom perguntou ao Ratinho o que queria comer. Este explicou. “E o senhor, Leão, o que vai comer?” - perguntou o garçom. O Leão respondeu: “Seu imbecil, você acha que se eu estivesse com fome, estaria aqui com o ratinho?" Moral da História: mesmo dentro do mundo das fábulas temos que manter certa lógica.

2- “Ondine” (2009) de Neil Jordan, antes de começarmos a  perdê-lo para a televisão, com poucos filmes para o Cinema, sem nenhum realmente relevante, mesmo tendo Isabelle Hupertt. 

 

Neil Jordan volta ao que sabe fazer melhor: histórias com forte pé na cultura irlandesa, além dos elementos mágicos que também aparece em algumas obras suas. Syracuse (Colin Farrell, cada vez mais melhor ator, o que comprovou ainda mais com “Os Banshees de Inisherin” e “Na Mira do Chefe”, ambos de Martin McDonagh, “O Lagosta” e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” de Yorgos Lanthimos, “Miss Julie” de Liv Ullmann, etc... ) é um pescador separado da mulher e com uma filha pequena com problemas sérios de insuficiência renal. É ex-alcoólatra e pesca/salva uma bela mulher em sua rede, que se diz chamar Ondine e não quer contatos com o "mundo exterior". Elementos realistas e mágicos vão se intercalando de modo que dentro da realidade interna do filme confundamos estes limites. Este já é um recurso bastante presente no cinema contemporâneo, seja na ficção, seja nos documentários (em muitos destes não se sabe os limites entre a ficção e o documentário, o que já está virando um clichê, quando mal empregado, mas esta é outra história...)


Com o canto de Ondine, Syracuse aumenta sua pesca quantitativamente e chega até a pescar bastante salmão com uma rede de arrasto que não é apropriada para isto. A filha, espertíssima, vai em busca do entendimento sobre o que é fabulação do pai, o que é realidade.

Uma das coisas mágicas fortes de “Ondine” é a grande coleta de salmões com rede não apropriada, enquanto Ondine canta. Isto é demais para que depois se tente uma interpretação realista para todos os fatos com imigrantes ilegais etc. Pode-se argumentar que seria uma coincidência. Mas que puta coincidência!!! Numa lógica de ficção eu até que aceito que ela seja pescada numa rede e salva, mas a pesca com grande fartura me pareceu forte demais. Milagre digno de Cristo...



Quando entra o estranho na história, o filme que tinha uma evolução relativamente plácida passa a ser narrado em atropelos. Sinal de que o diretor não confiava tanto assim no seu roteiro para nos convencer na versão final de que tudo se passa no plano da "realidade" e não no dos contos de fadas, ainda que termine com um casamento, onde ”serão felizes para sempre”.

Conforme bem observou um amigo, Syracuse aceita rápido demais a versão de Ondine de que não é uma criatura mágica. Não se passa assim do mágico sonhado à luz do dia, para o realismo concreto com tanta facilidade assim.

Outra coisa estranha no filme: se a filha estava enfim recebendo o transplante de rim tão desejado depois do acidente, não era para Syracuse acreditar tanto na ex-mulher quando ela diz que eles estão numa maré de muito azar...

Mas enfatizo, o filme como um todo merece ser visto, pois é muito bem dirigido, com imagens e planos incomuns muito bonitos. E o roteiro mesmo com furos, conforme “Café da Manhã em Plutão” é bastante atraente. Sendo este, relativamente um filme bem melhor. 

Já “Ondine” não tive ainda condições de rever para conferir se as restrições permanecem. 





2 comentários:

  1. Caro Nelson, adorável sua explanação. Não assisti a esse filme, onde poderia encontrá-lo, traduzido, de preferência?
    A música Feelings é de um brasileiro, que usou o pseudônimo de Morris Albert. Será que alguém ainda lembra?

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    1. Vide Claro Vídeo alugar por 6,90 R$ e verificar preços do DVD no site Mercado Livre. Feelings foi gravada sim por um brasileiro- Nelson Rodrigues de Souza

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