Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo
Hoje beija,
Amanhã não beija,
Amanhã não beija,
Depois de amanhã é domingo
E segunda-feira ninguém sabe o que será"
Carlos Drummond de Andrade
Prezado leitor,
O texto contém vários spoilers, ou seja, detalhes fundamentais são revelados, para a análise pretendida.
Numa era tão árida no Brasil e no mundo, visitar ou revisitar a obra de François Truffaut e sua vida, seus grandes percalços e sucessos, nos soa como um autêntico bálsamo. Ainda mais sendo alguém que exalava certa pureza de alma, no melhor sentido que esta palavra tem. Nada de moralismo aqui.
(Continuar lendo o texto conforme indicação abaixo e à esquerda).
Cinco Filmes de
Antoine Doinel
Tanto é assim que Steven
Spielberg para seu “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), não conseguiu
pensar num ator que pudesse passar a grandeza de alma que seu personagem
cientista requeria. Assim teve a ideia fantástica de convidar Truffaut para este
papel.
François Truffaut nasceu em
Paris em 1932. Até os 8 anos foi criado com a avó, depois foi morar com a mãe e
seu pai adotivo, a quem deve o sobrenome. Desde cedo se interessou por cinema e
literatura ( especialmente Balzac). Ele
se refugiava na Cinemateca e a tinha como uma vida paralela.
Sua relação com os pais
sempre foi muito conturbada e acabou sendo enviado para um reformatório por
iniciativa deles. Fugiu, abandonou os estudos, acabou trabalhando numa fábrica,
envolveu-se com a militância do cineclubismo e contraiu dívidas.
Seu encontro com o célebre
crítico André Bazin marcou um turning
point na sua vida, pois este passou a ser seu protetor e mentor, o que o
salvou da marginalidade.
Trabalhando no Cahiers du Cinéma, dirigido por Bazin,
deu forma a idéias que estavam ali fervilhando e escreveu em 1953 o célebre ensaio
“Uma certa tendência do cinema francês”, onde
atacava o que chamava pejorativamente de “cinema de qualidade francês”, onde
despontava o cinema dito realismo poético feito em estúdio de Marcel Carné, do
clássico “O Boulevard do Crime” (1945), dentre outros.
Ironicamente muitas vezes
quando se faz um referendo entre pessoas ligadas a Cinema na França, sobre os
melhores filmes da História do Cinema Francês, desponta em primeiro lugar
justamente “O Boulevard do Crime”. Nada como o tempo tempo tempo para se
colocar certas coisas, fatos, visões e afins no devido lugar, pois o que de
mais rico deve reinar em qualquer cinematografia de um país é a diversidade de
orçamentos, temas, tratamentos, modos de produção etc.
Mas nada disto invalida
muitos textos escritos por Truffaut no Cahiers
du Cinéma, como o de seus colegas, como a elaboração da teoria dos autores
cinematográficos, com Alfred Hitchcock sendo a maior revelação.
Mesmo assim, houve uma face ruim
desta moeda. O pessoal do Cahier desvalorizou cineastas mais do que ecléticos
como William Wyler, por exemplo, sobre o qual, não poderia ser pespegado o
conceito de um autor cinematográfico. Afinal, o que teria em comum “Ben Hur”
(1959), “O Colecionador” (1965) ou “Funny Girl-Uma Garota Genial” (1968)? Mas isto não impede que sejam grandes filmes.
Em 1959 Truffaut realizou seu
primeiro longa-metragem, “Os Incompreendidos”, de forte cunho autobiográfico, com
o qual ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Seu filme é
considerado um marco da Nouvelle Vague.
A partir de então dirigiu mais de vinte longas-metragens, escreveu dezenas de
roteiros, para si e outros cineastas e também livros onde o mais festejado é
“Truffaut-Hitchcock”, oriundo de muitas horas de entrevistas com o mestre do
suspense, a quem o cineasta francês, junto com colegas do Cahiers, reforçando o já escrito, passou a dar o status de grande autor que merecia, o
que críticos americanos não faziam até então. Htichcock seria mais um diretor
de filmes comerciais (sic).
Num texto-entrevista extraído
do livro "O Cinema Segundo François Truffaut” (Textos Reunidos por Anne
Gillain, Editora Nova Fronteira,1988) suas idéias sobre o velho e o novo, podem
ser assim sintetizadas:
“Os filmes dos jovens
cineastas parecem bastante com quem os faz, pois são realizados em total
liberdade. E realmente a liberdade é o único ponto que temos em comum. Há muito que os
diretores franceses tinham perdido o hábito de escolher o assunto a ser
filmado, isto é, uma concepção de filme que trouxesse dentro de si, algo que
sentissem visceralmente, que existisse em suas cabeças. Ao se tornarem vedetes,
os cineastas franceses passaram a ser muito solicitados. Então, passaram a
escolher em função das propostas que recebiam. ”
“Para nós, o importante é nossa maneira de ver
a vida, é falar sobre o que conhecemos. À verdade estereotipada, marca do
cinema francês, nós tentamos opor nossa própria verdade pessoal”.
De uma forma injusta e
irônica, estas mesmas qualidades que Truffaut apontava nos filmes da chamada
Nouvelle Vague, por alguns críticos e cineastas (especialmente Jean-Luc Godard,
para quem, como amigo, fez junto o roteiro “Acossado” ( 1960 ) foram negadas para parte da obra de Truffaut, sendo
que há até quem, como o próprio Godard, considere
medíocre uma autêntica jóia sua que é “A Noite Americana”(1973).
“A Noite Americana” chegou a
ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o que para muitos pode ser
imperdoável, um atestado de rendição ao cinema mais comercial, Esquecem que até
mesmo Bergman e Fellini ( com três Oscars de Filme Estrangeiro), Vitorio de Sica em altas doses de Oscars, também tem estas manchas em seus currículos...
Críticos de prestígio como
Jean-Claude Bernadet se equivocam quando afirmam que Claude Chabrol e Truffaut
deram continuidade ao “cinema de qualidade” ao qual tinham se oposto, quando o
fato foi que ampliaram suas visões de mise-en-scène no Cinema, trabalhando, de
modo geral, com temas que lhes eram muito caros e íntimos, não impostos, que
acredito, era a maior exigência que faziam a si mesmo enquanto artistas.
Chabrol, por exemplo, não é
menos Chabrol, quando leva “Madame Bovary” (1993) ao cinema, com excelente reconstituição
de época e trabalho magistral de Isabelle Huppert. Encontra-se aqui a pequena
burguesia de província, sobre a qual gosta de trabalhar.
Depois de fortes críticas de
Godard a Truffaut por “A Noite Americana”, com réplicas e tons pesados mútuos, os
dois não se falaram nunca mais. O grande elo passou a ser Jean-Pierre Léaud que
trabalhava em filmes dos dois cineastas, sem se importar com as brigas que os levaram
ao silêncio.
Esta querela nos lembra a forte cisão que houve entre Mário de Andrade e
Oswald no Brasil, até o fim da vida. Justo eles que eram amigos e foram os
grandes expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo.
Em termos de livros, além de obviamente recomendar “Hitchcock-Truffaut-Entrevistas”(1966),
sugiro “O Cinema Segundo Truffaut”(1988) com artigos e entrevistas selecionadas,
já citado e principalmente “Os Filmes da
Minha Vida” (1975), onde, pioneiramente nos fala dos filmes que mais lhe tocam, procura pensar e escrever sobre eles,
explicitando suas razões, ainda que certo mistério sobre estas escolhas
permaneçam. Muitos livros foram publicados dentro desta ótica depois,
principalmente coletâneas onde personalidades diversas escrevem sobre filmes
prediletos.
Confesso que tenho certa
dificuldade com o livro de entrevistas com Hitchcock. Não assisti a todos os
filmes mencionados desde os primórdios da carreira em Londres. São muitos e gosto
mesmo de ler sobre os filmes que assiti
e os que podem estar em vias de serem vistos, ou ainda, tenho chances de ver. Há
um ar de festa para a qual não fomos convidados em certos pontos.
Mas claro que, de modo geral,
ainda que Truffaut se mostre um tanto fanático, surpreendendo até o mestre do
suspense com suas observações e leituras particulares, o livro, principalmente,
envolvendo os melhores clássicos do cinema Hitchcock, a maioria dos quais assisti, com DVDs em casa
por ser visto, é um dos essenciais do Cinema.
Houve no CCBB-RJ uma mostra
com todos os filmes do mestre do suspense. Quem viu a maior parte deles é o leitor ideal para este livro de entrevistas.
Mas carinho especial mesmo
tenho por “Os Filmes da Minha Vida”. Influenciado por ele pretendo escrever “Os
Filmes que Vivi”. Sempre acreditei no poder de grande transformação das pessoas
que os grandes filmes (e às vezes nem tão grandes assim) trazem. Assim
poderemos passar estas energias para outras pessoas de forma qualitativa e ao
mesmo tempo, por nos tornarmos pessoas mais conscientes e melhores
espiritualmente ( o que não tem nada a ver necessariamente com religião),
faremos com que o mundo melhore, pelo menos um pouco. Claro que isto não vai
dispensar grandes ações e politicas públicas complexas em prática.
Em suma: filmes serão
narrados e expostos o porquê do impacto deles em minha vida.
Sobre a célebre entrevista
vale a pena ler :
Um filme sobre as
aproximações e dissensos entre Truffaut e Godard é o excelente doc “Godard-Truffaut
e a Nouvelle Vague” (2010) de Antoine de Baecque, Emmanuel Laurent, disponível
em DVD..
Vide http://encurtador.com.br/GLX15, -
Filmografia Completa de François Truffaut
Truffaut, o mais amado dos
diretores franceses morreu em 1984 e nós, seus grandes admiradores ficamos
privados da continuidade de uma obra que exalava lirismo 24 quadros por segundo
na era analógica.
Mas mesmo tendo uma
filmografia curta relativamente a outros grandes cineastas franceses, Truffaut,
pela força temática; intensidade emocional; seu amor aos personagens; obras impregnadas
de humanismo; seu forte lirismo; suas atrações e tentativas de compreensão de
pessoas obsessivas; o cuidado para não resvalar para o cinismo etc, com tudo
compondo suas marcas autorais, quando sua filmografia quando comparada aos
filmes que assisti de Jean-Luc Godard, resiste muito mais à passagem do tempo.
Mas fica a ressalva que, diante de uma obra tão imensa, há trabalhos de Godard,
até bastante incensados, que nunca assisti.
Não é sem razão que Truffaut
é tido como o cineasta que mais explorou o amor e suas várias circunstâncias em
seus filmes. Mais uma grande marca autoral. Dedicou muito amor às mulheres ( “A
História de Adele H.”( 1975), por exemplo; aos livros (“Farenheit 451” ( 1966);
ao cinema ( “A Noite Americana”(1973); às crianças( “Na Idade da Inocência”
(1976)); por que não ao amor mesmo ( caso de praticamente todos os seus filmes)
e por que não dizer, aos seres humanos em geral?
Neste sentido é emblemática
uma das sequências antológicas de “A Noite Americna”, onde Severine (Valentina
Cortese) é uma atriz veterana em crise que está sempre errando a saída por uma
porta e abrindo um armário. O diretor, alter-ego de Truffaut, tem a maior
paciência do mundo com ela. O espectador é que pode ficar impaciente.
Aos seus personagens
masculinos também é endereçado uma boa dose de afeto. Há o incrível e obstinado
protagonista de “O Homem Que Amava as Mulheres” (1977), tanto que acaba
morrendo justamente por uma desatenção no hospital, ao ficar vidrado também na
enfermeira que dele cuida, não deixando de ser também um filme de amor às
mulheres.
Truffaut mostra-se bastante
carinhoso com este homem, mostrando-o como alguém bastante elegante que não
assedia as mulheres. Ele as paquera, o que é bem diferente. Uma confusão perigosa
e perniciosa que certa ala neo-feminista hoje no Brasil (e no mundo?) anda fazendo.
No dilema “nem com você, nem
sem você” de “A Mulher do Lado” (1981) levado a extremos, a balança emocional
do cineasta não pende para nenhum dos amantes. Procura mostrar os dois com
todas as suas contradições.
Não se pode deixar de
ressaltar o grande amor dedicado a Antoine Doinel, seu alter-ego, vivido com
extraordinária química diretor-ator por Jean-Pierre Léaud em 5 filmes, que já
se tornaram clássicos do Cinema, ainda que não sejam todos obras-primas.
Costumo fazer esta distinção
de valoração. Eu amo “E O Vento Levou...”, uma obra-prima do cinema. Não me
canso de assistir. Mas mesmo quem não goste, tem de reconhecer que se trata de
um clássico do Cinema.
“Os Incomprendidos” (1959) nos
mostra o garoto de 12 anos, Antoine Doinel ( Jean-Pierre Léaud numa das mais
belas e precisas interpretações do
cinema já vistas para esta faixa etária) que mora com o pai não biológico
Julien Doinel ( Albert Rémy) e a mãe Gilbert Doinel ( Claire Maurier).
Antoine não suporta a
indiferença dos pais, principalmente da mãe e a tirania do sistema de ensino
que corrobora a ideia de Ingmar Bergman de que é estruturado na humilhação. Em
casa afoga-se na leitura de Balzac e vai muito ao cinema, matando aula com seu
amigo Petite Feuille (Guy Decomble), sendo que um dia chega a ver a mãe
beijando um amante, esta se assusta com a presença inesperada e inconveniente
do filho.
Para justificar sua falta à
aula chega a mentir que a mãe morreu. Descoberto é humilhado na frente de
todos, como já havia acontecido antes.
Dorme fora de casa numa
gráfica. Os pais acabam reconduzindo-o à vida em família. Novamente
humilhado na escola por ser acusado injustamente de ter plagiado Balzac,
justamente um escritor para o qual chegou até a criar um santuário num armário
com uma vela acesa que provoca um pequeno incêndio.
Desta vez mexeu com a ira do
pai e a contemporização da mãe. Esta atitude com relação a ele, talvez seja
uma forma de ter a cumplicidade dele para esconder que tem um amante.
Antoine sai de casa e vai
dormir escondido no apartamento de Petite Feuille. Um roubo malsucedido de uma
máquina de escrever do pai acaba conduzindo-o por iniciativa dos pais à prisão
e depois a um reformatório.
O interrogatório de Antoine pela psicóloga, de
forma ainda mais especial do que em outras sequências, nos mostra um jovem ator
já plenamente maduro. Jean-Pierre Léaud, ainda bem jovem, se mostra um
autêntico “bicho de câmera”. Seu riso malicioso quando ela pergunta se ele já
dormiu com mulheres é um toque especial numa sequência fantástica, onde sua
condição perante a sociedade nos é desnudada.
A fuga de Antoine do
reformatório é antológica. Ele se esconde de um inspetor que o persegue. Depois
corre...corre... Atinge o mar, vai em direção a ele, depois volta em direção a
nós espectadores e a câmera para, seu olhar nos fixa. Tudo se passa como se nós
fôssemos convidados a dar uma solução de continuidade para sua vida e/ou ainda
questionando nosso grau de responsabilidade em relação ao que vive.
Truffaut nos mostrou o que
podia e nós, o que temos com aquela história, parece nos perguntar. Na vida
real, fora da vivência de seu alter-ego, Truffaut encontrou o critico de cinema
e ensaísta André Bazin, a quem é dedicado o filme. Mas e se ele não tivesse
encontrado esse protetor, ficaríamos nós sem a obra desse gênio do cinema? Será
que existem Truffauts por aí que ganharam a Rua da Amargura definitivamente?
O filme é semi-autobiográfico,
pois não se trata ali da transcrição literal dos eventos vividos por Truffaut.
Este plano final surpreendente, reiterando, é um desafio lançado a nós para que
especulemos sobre o que será a vida de Doinel doravante e um chamado à nossa
responsabilidade. Dificilmente imaginaríamos encontro com André Bazin, num
acaso que não existe.
Um plano frontal assim, um
olhar diante dos nossos olhos, nos encarando, é visto em “Mônika e o Desejo” (1953) de Ingmar Bergman, um filme bastante cultuado por Godard e provavelmente
por seus colegas do Cahiers. Truffaut pode ter se inspirado nele para o desfecho
de “Os Incompreendidos”.
“Antoine e Colette”( 1962) é
um episódio de “Amor aos Vinte Anos” onde Antoine finalmente aborda Colette (Marie-France Pisier), que já conhece há
algum tempo, num concerto.
Ele dá um jeito de morar em
frente à família dela, ficando mais íntimo da mãe (Rosy Varte) e do padastro
(François Darbon). Numa refeição com esta família aparece o namorado de Colette,
um ato surpresa que provoca a primeira grande desilusão amorosa de Doinel, algo
que será uma tônica dominante em sua vida.
Em “Beijos Proibidos” (1968)
Antoine é expulso do quartel onde servia, por ”inadequação de caráter”. Arruma
um emprego de vigia noturno de um hotel e depois de detetive. Ao mesmo tempo em
que flerta com Christine (Claude Jade), tendo bom relacionamento com os pais
dela, um trabalho extra que recebe, dentre outras tarefas bizarras, mexe com
seus sentimentos: um dono de sapataria. Sr. Tabard (Michael Lonsdale) quer
saber o porquê de não ser amado por ninguém e procurou a agência porque não
quer saber de psicanalista.
Antoine é infiltrado na loja
e acaba se envolvendo com a mulher do cliente, Fabiane Tabard (Delphine
Seyrig). Depois de um rápido flerte, Antoine cai em si que deseja mesmo
Christine. Namorando juntos num banco de
rua terão a resposta para um intruso que os espiona hitchockniamente: está apaixonado por Christine e tem “todo tempo
do mundo” para dedicar-lhe a vida.
Em “Antoine e Colette” e
”Beijos Proibidos” há uma constante que é importante ressaltar: Antoine não
está em busca apenas de um grande amor, mas também de uma família, aquela que
não teve e que gostaria de ter tido. De certa forma esta busca concomitante
atrapalhará na vida amorosa.
“Beijos Proibidos” começa com
a cinemateca de Paris fechada e Christine vendo cenas das lutas de maio de 1968
no final, antes que a televisão encrenque e ela tenha que chamar Doinel, então trabalhando como técnico. O que se vê com mais
clareza em “Os Sonhadores” de Bernardo Bertolucci, que é a demissão de Henri
Langlois da diretoria da Cinemateca, os protestos e depois os grande movimentos
nas ruas, até com violências, aqui neste filme de Truffaut feito no mítico 1968,
nos é mostrado de forma bem elíptica. É uma forma de Truffaut afirmar o que
sempre mostrou: os sentimentos humanos interessam-lhe muito mais que a
política.
Até mesmo em “O Último
Metrô”, onde se trata da resistência da classe teatral à ocupação nazista, as
relações de amizade ou sentimentais entre os personagens estão em primeiro
plano.
“Domicílio Conjugal” (1970)
nos mostra Antoine e Christine casados e logo tendo um filho, Alphonse. Ela dá
aula de violino. Ele trabalha de início tingindo flores e depois com manobras
de pequenos petroleiros para uma maquete de uma empresa. Lá ele conhece e se
encanta por Kyoto ( Hiroko Berghauer), promovendo a sua separação.
Tanto nesta obra como na
anterior há um homem misterioso que volta e meia se aproxima deles. Mas agora
bem antes do fim se revela. É um comediante de televisão e nela é visto
imitando a voz em off de “O Ano Passado em Marienbad“. Depois é reconhecido na rua
e o temor instalado se dissipa. Mais uma vez Truffaut brincou um tanto como
Hitchcock. Mas este é emulado com força mesmo é em “A Noiva Estava de Preto”
(1968) e “A Sereia do Mississipe” ( 1969).
Neste “Domicílio Conjugal”, depois de alguma discussão a separação passa a ser amigável. Antoine está
escrevendo um livro. Há uma longa e belíssima seqüência que vai do apartamento
até a rua. Ela rouba um beijo na escada.
Na rua, Christine a propósito
do trabalho dele como escritor, comenta que não entende bem de arte, mas
considera que ela não pode ser um ajuste de contas com o passado. Ele diz que
está se esforçando para que assim não seja. Ela reconhecendo que tem baixa auto-estima
diz que o ama. Ele fala da chatice que está sua vida com a japonesa. No carro
ela pede um beijo. Ele diz que ela é como irmã, como mãe para ele (confirmando
a busca que ele tem por uma família visto em “Antoine e Colette”). Ela diz que
a ele faltou, a ter como sua mulher e o carro vai embora depois deste diagnóstico preciso.
No restaurante com Kioto à
mesa, ele a todo o momento vai telefonar para a mulher comentando que não está
suportando mais a companhia dessa pessoa estranha que a japonesa revelou ser:
não suporta mais seus insistentes sorrisos.
Chega um ponto em que Antoine,
ao voltar à mesa, encontra uma mensagem de adeus bem simples, definitiva, com
um necessário baixo calão. A partir daí os protagonistas de “Domicílio
Conjugal” reatam a relação. O olhar duvidoso de um vizinho ao conversar com a
mulher a respeito deste idílio, vai colocar em dúvida a permanência dessa
união.
Em “O Amor em Fuga” (1978)
Antoine está com 35 anos e o vemos logo de início namorando Sabine ( Dorothée).
Saberemos depois que o incorrigível namorador chegou até ela através de uma foto despedaçada que
recompôs e pela qual se apaixonou, depois que alguém numa cabine telefônica
rompeu com ela a ponto de rasgar a foto.
Antoine está tão aparvalhado
que sua mulher Christine (Claude Jade) é quem o avisa o dia e a hora da
assinatura do divórcio amigável a que chegaram. A advogada Colette (
Marie-France Pisier) o reconhece. Ela compra o romance que Antoine escreveu.
Numa viagem de trem Antoine e
Collete relembram fatos do passado e discutem sobre o livro: o que ele teria de
real ou de ficção. Desafiado a narrar um romance que não tenha nada a ver com
sua vida ele mente, contando a história da foto como se ela se referisse a
outra pessoa. Mas no livro seu que ela lê, ele escreve que por coincidência, a
família de Collete veio morar perto dele.
Collete se lembra que Doinel está
mentindo: foi ele que veio morar perto deles. São os ardis da ficção de cunho
autobiográfico que deve haver em muito mais alto grau em “Os Incompreendidos”, mesmo
sendo a obra certamente mais próxima do que Truffaut viveu, mas que tem uma
autonomia artística forte.
Se terminássemos a história de
“Os Incompreendido”, com encontro com alguém com a generosidade de
André Bazin, o filme não teria a força dramátic que tem. Em “Oliver Twist” (2005)
de Roman Polanski (para ficarmos nesta última até aqui e subestimada versão
para o cinema deste clássico de Charles Dickens), depois de bastante explorado,
o bem jovem protagonista encontra um senhor rico que lhe dá ajuda. Mas este
encontro ocorre logo no primeiro terço do filme e está sujeito a recuos e
mal-entendidos.
O jogo fascinante proposto
por “O Amor em Fuga”* é que além de flahsbacks
da relação mais recente de Antoine e Christine temos aqueles que são cenas
extraídas de “Beijos Proibidos” e “Domicílio Conjugal”, quando eles eram bem
mais jovens. Estas seqüências aliadas às pertencentes ao curta-metragem
“Antoine e Colette” e a “Os Incompreendidos” trazem uma bastante graciosa,
poética e especial forte originalidade ao filme.
A estrutura da obra é tal que
se não conhecemos os filmes originais não há perda maior de sentido, mas se os
já os tivermos vistos, um grande prazer adicional teremos ao acompanhar as
transformações por que passam os personagens e mesmo os atores em jogo, através
do tempo que flui.
Em “Os Incompreendidos”,
conforme já narrado neste texto, Antoine
flagra sua mãe com um amante na rua, num belo beijo. Em “O Amor em Fuga” este
homem o procura no trabalho e depois de certo estranhamento se reconhecerão.
Trata-se de Lucien (Julian Berthau).
A idéia que Lucien nos passa
em “O amor em fuga” de que Antoine no fundo é muito parecido com a mãe faz
sentido: ambos tem uma relação bastante
conflituosa sobre o que é o amor a ponto de não amadurecer e estar sempre em
busca de algo que não os satisfaz.
O senhor nos é apresentado
como aquele que foi o amante mais importante da mãe de Antoine. Ele leva o
filho ao cemitério para visitar o túmulo desta. Quando do falecimento dela, Doinel
estava preso no exército.
Não se pode deixar de
especular, extrapolar esta cena e enxergá-la como uma resolução para um possível drama que o próprio Truffaut poderia estar
vivendo. Pode ter feito um ato de misericórdia e perdão através de sua arte.
“Os Incompreendidos” é a
grande obra-prima deste conjunto de filmes sobre a saga de Antonie Doinel. Os demais são filmes de vários grandes
momentos. “O Amor em Fuga” parte de um argumento genial que é aproveitar o que
já foi filmado de Doinel em outras fases de sua vida e colocar tudo em
perspectiva para o presente. O que é mostrado do passado, seu senso de
oportunidade, tem um frescor, uma beleza, aura poética, que comparece sem a
mesma força no que é filmado para o presente e que o passado recente também se ressente.
Neste “O Amor em Fuga” o
retrato de Sabine todo rasgado e depois reconstituído é a representação do que
as mulheres passaram a significar no imaginário do protagonista. Para quem o amor está em fuga, a mulher que
procura está estilhaçada.
No fim do filme Sabine e
Antoine se beijam num canto, como o casal que ouve a faixa “O Amor em Fuga”
mais ao fundo na loja de disco. Antoine terá finalmente redescoberto o amor que
sempre lhe escapulia?
Se Truffaut tivesse vivido
mais, certamente nos brindaria com pelo menos mais um filme sobre este
personagem tão fascinante.É um dos
maiores e mais célebres alter-egos da história do cinema, assim como Marcello
Mastroianni e seus personagens fellinianos é para filmes de Federico Fellini.
No Brasil temos o polêmico Marcelo, para mim bastante interessante, alter-ego
de Walter Hugo Khouri em seus filmes. Este tem a particularidade de ser visto
na pela de difentes atores, como Roberto Maya, Tarcísio Meira etc.
Neste irregular, mas bastante
fascinante “O Amor em Fuga”, Collete é mostrada com a filha e o marido em
“Beijos Roubados” encontrando-se casualmente com Doinel. Christine conta à
advogada, mais uma da turma das ex-Doinel, conforme elas brincam, que soube
deste encontro. A advogada diz que a filha morreu atropelada.
A advogada mostrada em flashback, é vista em sua dor e desespero. Depois se separou do marido, não
quis mais ter filhos e decidiu terminar o curso de Direito. Atualmente está
sendo advogada de um cliente que matou o próprio filho. Este cliente tentou o
suicídio e ela tem uma semana livre.
Assim, aqui comparece o lado
fatalista de tantos filme de Truffaut,
uma mola mestra que vemos em “Jules e Jim-Uma Mulher Para Dois” (1962),”Um Só
Pecado” ( 1964), ”A Noiva Estava de Preto” ( 1968), A Sereia do Mississipe” (
1969), “A História de Adele H.” ( 1975),
“O Homem Que Amava as Mulheres ( 1977), “O Quarto Verde” ( 1978), “A Mulher do
Lado” ( 1981). Este último, grande obra-prima, traz este lado fatal de forma
bastante potente e cruel, junto a “A História de Adele H.”. A dor como ela é,
parece nos insinuar.
Este senso de fatalidade,
acompanhado de amor a estes seres com destino cruel, talvez venha da
consciência de que sua vida tenha sido salva por um triz, conhecendo e sendo
apadrinhado por André Bazan. Teria um destino que poderia ser medonho sem este
protetor, dado que, por este lado freudiano, são os traumas de
infância/adolescência os que mais persistem na vida adulta e nos sonhos.
Mas nestes sonhos comparece
também elementos não vividos e sim ancestrais do inconsciente coletivo de Yung.
É o que nos reequilibra mais, fazendo com que saiamos de nós mesmos e então descobrimos
o que nos liga a experiências de toda humanidade.
Em “O Garoto Selvagem”
(1970), um personagem criado longe dos homens, meio homem, meio bicho, é protegido
e estudado por um cientista (Truffaut), mas acaba retornando à selva, seu
habitat natural. Podemos dizer que nesta atitude, este insólito jovem é movido
pelo seu inconsciente coletivo. Ele viveu numa condição humana que o aproximou
de suas ancestralidades. Daí a facilidade ( ou dificuldade menor) que teve em
ser criado neste mundo, do qual não quis sair. A civilização não tinha nada que
lhe ensinar. Aqui podemos ter, paradoxalmente mais um filme fatalista ou com
final feliz.
Em termos de sonhos, o mais
belo, provavelmente, é o que mostra o diretor enquanto menino, paulatinamente,
em preto e branco, no decorrer de “A Noite American”, até ele com um gancho
puxar os retratos expostos de “Cidadão Kane” de um Cinema quando fechado,
roubando todas as imagens.
Em “Beijos Proibidos” há o
beijo que Antoine rouba de Christine na escada, segurando bem seu pescoço. Em
“Domicilio Conjugal” é ela quem rouba o beijo dele, neste mesmo local. Estas
duas sequências, de uma beleza e poesia suis generis, são evocadas em “O Amor
em Fuga” em reminiscências dela, quando estão a caminho da assinatura do
divórcio.
Em “O Amor em Fuga”, Antoine
é flagrado traindo a mulher com uma aluna dela. A mulher conta depois à Colette
que ele alegou que foi por causa dela mesmo ter colocado uma capa em seu livro.
O personagem é capaz disso mesmo. Não há cinismo aí.
Criando um personagem já
adulto, sem nenhum machismo, com muita sensibilidade, inquietação, um
romantismo gauche, uma melancolia
disfarçada de bom humor, docemente revoltado, Jean-Pierre Léaud tem uma afinidade
extraordinária com a câmera de Truffaut. Este encontro dos dois é algo mágico.
Não poderiam imaginar que fariam tantos filmes juntos depois do trabalho em “Os
Incompreendidos”. Jean-Pierre com seu personagem nos passa muito bem uma idéia
admitida por Truffaut: “eu sou um romântico que desconfia do romantismo”.
Nas obras de Truffaut
costumamos ter um distanciamento do que é narrado, mas paradoxalmente não deixa
de ser algo sempre caloroso. É um clichê crítico, mas nunca é demais repetir.
Nenhum cineasta que eu conheça, colocou tanto sua alma, afetividade e seu coração nos filmes que fez.
Não é à toa, lembremos mais uma vez, que Spielberg o chamou para ser o
cientista que vai se comunicar com os extraterrestres em “Contatos Imediatos do
Terceiro Grau”. Esta alquimia entre distanciamento e sentimentos aflorados sem
frieza é realizada à perfeição por Truffaut
Seus filmes com Doinel
começam e já temos de imediato a sensação de que é a vida que está pulsando, continuando,
fruto das ações de seus personagens e dos mistérios dos encontros. De imediato
instala-se uma forte familiaridade, mesmo para quem não tenha visto os outros
filmes.
Atulmente encontramos muito deste
tom em filmes do filipino Lav Diaz (já bastante comentado numa postagem
anterior deste blog), mas em ritmo e estética bem distantes, pois Truffaut
gosta bastante do trabalho de edição/montagem.
Nos filmes com Antoine se
fala muito de amor ( e desejo), mas se tivesse que escolher apenas uma obra de Truffaut
de sua filmografia, onde este tema reinasse soberano, seria “Duas Inglesas e o
Amor” (1971).
É onde Truffaut, acredito, vai
mais fundo ainda na abordagem deste sentimento e suas intermitências. O
triângulo amoroso composto por Claude (Jean-Pierre Léaud), Ann ( Kika Markham)
e Muriel ( Stacey Tendeter ) atinge nuances que a saga Doinel inteira talvez não logre.
“Os Incompreendidos” também é
uma obra prima, mas o que nos mostra é a falta de amor na infância/pré adolescência
no meio familiar, escolar e principalmente num reformatório.
Este meu culto particular de forma
alguma desmerece o empenho dos filmes expostos neste texto, mas sim procura alertar
para o quão excepcional é “Duas Inglesas
e o Amor”, merecendo ser conhecido ou revisto. Curiosamente Jean-Claude não é
Doinel. Mas sua insegurança, suas incapacidades de escolhas, a perda de timing
para situações importantes da vida, o senso de despertencimento etc é o mesmo.
Um filme de Truffaut com o
qual “Duas Inglesas e o Amor” dialoga é “Jules e Jim-Uma Mulher Para Dois” (1962).
Não por acaso os dois se baseiam em obras de Henri Pierre Roché.
Vistas em 2017, numa era em
que há o mercado forte de partes do corpo humano na Internet, como iscas para
um relacionamento supostamente amoroso, as inquietações, angústias e hesitações
de Doinel e do protagonista de “Duas
Inglesas e o Amor” ( e em outros filmes de Truffaut) podem parecer naifs, mas
não são de modo algum..
Truffaut vai fundo na questão
amor/sexo, seus imbricamentos, intercâmbios e de tal forma, que atinge camadas
de afetividade do ser humano que podem estar soterradas. Este rendez-vous virtual contemporâneo é equivalente
aos encontros com as prostitutas de “Beijos Proibidos” e “Domicílio Conjugal”:
é o sexo fácil sem amor, com raras exceções.
Ainda que em seus filmes não haja cenas ousadas de sexo, como vemos hoje no cinema ( algumas ainda mais ousadas mesmo como "Azul é A Cor Mais Quente", "Um Estranho no Lago" etc ), Truffaut pode dar a impressão que nos remete só ao sentimento amoroso. Mas não deixa de, ao seu modo, de abordar o erotismo que acompanha as relações, as leis do desejo. Isto fica mais claro em "A Mulher do Lado" e "Duas Inglesas e o Amor". Neste último há desejos bastante reprimidos que querem aflorar, tremores e afins, mostrando o quanto os personagens são seres desejantes de sexo, mas que não sabem o lugar certo e como colocar este desejo.
Não vai aqui nenhuma
apreciação de ordem moralista ou ética, mas a constatação de algo que pode
representar uma banalização perigosa dos afetos, ferindo as pessoas mais do que
promovendo autênticos e valiosos encontros, em mais uma conquista da
modernidade que pode se transformar num tiro pela culatra.
Doinel quer ir muito mais
além destes encontros fortuitos. Os que estão estacionados na virtualidade não
têm a coragem que Doinel apresenta, mesmo com suas errâncias e vicissitudes. Daí
o grande interesse da “saga”, sua atualidade e perenidade.
Nelson Rodrigues de Souza
PS-! * O Amor em Fuga” (1979) trabalha ao seu modo,
antecipando-se, com elementos que nos remete a “Boyhood: Da Infância à
Juventude (2014)” de Richard Linklater, onde Ellar Coltrane ( Evans) é
acompanhado da infância até quando entra na universidade, numa história
fictícia criada, em continuidade com várias fases de sua vida.
Mas se é o amor o tema que
mais ressoa nos filmes de Truffaut, no de Richard temos o grande sujeito oculto
que é o tempo, que além do crescimento do garoto exalando poesia, vai provocar forte
dor em Olivia ( Patricia Arquete ), mãe de Evans, que sem relação amorosa satisfatória
construída, com a saída dos filhos dos seus cuidados ( algo que ela até
incentiva), descobre o quanto deixou de cuidar mesmo da própria vida. O
trabalho da atriz, mostrando esta grande angústia e atordoamento, é excelente e
lhe rendeu um merecido Oscar de Atriz Coadjuvante.
PS-2 De forma análoga ao
post sobre François Ozon, o ideal aqui não foi feito, por uma questão de tempo
e indisponibilidade de DVDs, que é rever a obra toda, principalmente os filmes
mencionados. Trabalhei com memórias, escritos, pesquisas. Para erros que possam
surgir, já deixo antecipadas minhas desculpas.
PS-3 Este texto, revisto e
ampliado, foi publicado originalmente em 2006, para o jornal via web Montblãat,
dirigido pelo grande e saudoso jornalista Fritz Utzeri, a quem é dedicado.
Nelson Rodrigues de Souza – 21/07/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário