domingo, 2 de julho de 2017

"Frantz" e "O Planeta Ozon"


François Ozon não é um gênio do Cinema. Mas está dentre os cineastas contemporâneos muito bons que tem uma carreira bastante prolífica, englobando curtas e longas metragens, experimentando diversos gêneros e estéticas, sem deixar de ter uma marca bem autoral.


Tendo como  principais temas as intermitências e trocas de identidade ( muitas vezes surgindo máscaras poderosas);  metamorfoses dos seres humanos conforme situações inesperadas; os poderes inconscientes e conscientes das (homo) sexualidades em suas diferentes facetas e situações; a imprevisibilidade dos acontecimentos da vida etc.

Ozon assim como Hitchcock, Polanski, Cronenberg, Lars Von Triers, Buñuel , Almodóvar etc,  é um cineasta bastante lúdico e perverso, mas no sentido bastante transgressivo e positivo que esta palavra  perverso também tem.  

A primeira vez que soube que François Ozon existia, enquanto cineasta prestigiado, foi em 1998 em Chelsea, então bairro gay de Manhattan em Nova York, onde estava hospedado, fascinado com a ausência de repressões, com casais de gays andando de mãos dadas, trocando beijos e com pubs com decoração homoerótica que abriam bem cedo etc. 

Por várias paredes do bairro cartazes simples nos convidavam a assistir “See The Sea” ( “Regarde La Mer”) ( 1997) de Ozon que uma crítica bem sintética sinalizava que remeteria a “Persona”, um dos pilares da obra de Ingmar Bergman. Seria uma heresia esta ilação, mesmo guardadas as devidas proporções?

Claro que não poderia perder o filme, perto de onde estava, no Quad Cinema de Chelsea, exibido numa das salas.

Apesar de ter prometido a mim mesmo que assistir filmes em Nova York seria uma das últimas atividades que faria ( já me envolvia em maratonas no Rio de Janeiro), com tantas novidades por conhecer nas ruas e avenidas,  museus, centros culturais, arquiteturas, musicais da Broadway etc, não resisti e fui assistir o filme do “tal Ozon”.

Em “See The Sea”, Sasha ( Sasha Hails) é uma mulher, com um bebê que é bastante solitária, pois seu marido ( Nicolas Breviére)  está sempre trabalhando fora , deixando-os numa casa de praia.
Tatiana ( Marina de Van), uma jovem bastante descolada, onde se destacam piercings e roupas nada convencionais, além da linguagem como se expressa, pede para acampar no terreno da casa, com sua barraca e Sasha consente.

Uma amizade se desenvolve, mas Tatiana passa a invejar a vida burguesa da anfitriã, enquanto Sasha anseia por ter a liberdade que Tatiana apresenta na vida, se movendo para onde quer e talvez tendo em sua solidão uma atração homoerótica por esta mulher tão diferente de si.

Mas uma pequena e significava atitude escatológica de Tatiana já vai sinalizar que esta amizade está eivada de falsidades, com acontecimentos estranhos em progressão. Tudo vai evoluindo até desembocar numa tragédia, num dos desfechos de filme mais cruéis que já assisti. 

Este tema da dominação paulatina que vai sendo praticada por alguém de “‘classe inferior”, em relação a um de “classe superior”, ocorre também no clássico “O Criado” ( 1963) de Joseph Losey, baseado em roteiro de Harold Pinter, mas com consequências diversas. 

Mas aonde entra “Persona” então? Na troca de identidades que ocorre entre as mulheres, onde Tatiana passa a ser a dominadora de uma mulher fragilizada, dona de uma casa que não é sua, formando também uma região de sombra onde estas personalidades se confundem.

Ocorre enfim algo análogo ao clássico de Bergman ( infinitamente superior, é óbvio, pois aqui temos um gênio do Cinema), onde a enfermeira Alma( Bibi Anderson), numa casa de campo, passa a realizar uma espécie de terapia, trazendo um forte trauma à tona,  ligado à sexualidade e outros temas, diante de quem deveria estar cuidando, a atriz Elizabeth ( Liv Ullmann) que perdeu a voz em uma montagem de “Electra” e tem esta deficiência há meses.

Mas Elizabeth mostra com o tempo, mesmo sendo alguém que tese seria quem estava ali fragilizada, que ouve tudo, mas passando ao desdém, o que vai deixar a enfermeira Alma arrependida das confissões que fez. As sombras que confundem estas personalidades também comparecem e está simbolizada num plano icônico, onde metade de um rosto vem de Alma, a outra de Elizabeth.

“See The Sea” com situações psicológicas anímicas complexas e clima crescente de suspense, me fisgou para sempre para o Cinema de François Ozon.

Nunca exibido no Brasil e ao que eu saiba nem existe em DVD, trata-se de uma obra singular que merece chegar ao espectador brasileiro, pois já tem fortes componentes do que viria no Cinema de Ozon depois, reiterando elementos  já escritos: confusão e/ou fusão de identidades; situações perversas e dificuldades em lidar com isto; o gosto pelo suspense; o homoerotismo velado;  desconcertantes imprevisibilidades nos conduzindo a desfechos que podem até ser poéticos, mas são desconcertantes.

São elementos que surgem também em “Frantz” ( 2016) em cartaz,  onde temos um primor de classicismo ( que não deve ser confundido com academicismo); um melodrama nobre, como os de Douglas Sirk, o papa do gênero, que influenciou bastante Fassbinder, Almodóvar e parte da obra de Todd Haynes ( não experimental); situações propriamente dramáticas, um clima agridoce ou até mesmo um mistura de tendências quase que indissociáveis e até mesmo um possível caso de homoerotismo velado ou até explicito, de acordo com um jogo que o diretor faz com a mente dos diferentes espectadores.

Depois de um panorama de obras de Ozon, nos concentraremos em “Frantz”. 

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Em “Sitcom-Nossa Linda Família” ( 1998), um filme de inspiração buñuelesca, o pai ( François Mar Thouret) de uma família de classe média traz um rato para casa. Isto vai desencadear bizarras atitudes que deviam estar submersas na mente dos personagens.
A filha Sophie ( Marina De Van) manifesta tendências suicidas e inclinações ao sadomasoquismo que procura colocar em prática. O filho Nicolas ( Adrien Van)  revela sua homossexualidade, a empregada doméstica Maria ( Lucia Sanchez) não controla mais seus desejos sexuais etc. A mãe ( Evelyne Dandry)  tenta trazer todos ao que seria ser sua normalidade.

Afinal onde repousa as verdadeiras identidades? Antes dos efeitos do rato ou depois? Adianta se livrar do rato “anjo exterminador”?
Aqui temos um Ozon sem muitas sutilezas. As suas intenções ficam bem claras. Mas esta comédia de situação, com direito até a cortinas para realçar a teatralidade, tem seus encantos e um poder hipnótico. Será que nós espectadores seremos também transformados por este bichinho? 

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“Gotas D’água em Pedras Escaldantes” ( 2000)  é uma adaptação de uma peça de Rainer Werner Fassbinder, onde um homem de negócios, Léopold  ( Bernard Giraudeau) aos 50 anos seduz o jovem Franz ( Malik Zide) em seus 19 anos.
Os dois passam a viver juntos, mas com o tempo esta relação começa a se deteriorar.
Aqui as pressões que homossexuais sofrem vem de relações íntimas, onde o se amor existia mesmo ( ou só atração sexual) acaba fenecendo, estabelecendo -se um jogo de poder, onde alguém passa a dar as cartas. Não são pressões externas de homofobias sociais que estão em jogo. 

Fassbinder tem um filme também nesta chave que é “O Direito do Mais Forte” ( 1965). Aqui um pobretão ( Fassbinder mesmo) ganha uma boa quantia num jogo. Mas seu namorado de classe média, acaba ludibriando-o, deixando-o sem nada.
Aqui não está em jogo homofobia, mas a emblemática ganância dos homens que não tem limites.

A sequência final é atordoante. O corpo do gay lesado pelo suposto “amado” está caído numa estação. Num plano fixo longo, vemos crianças e jovens que passam  e verificam o que pode haver de valor nos bolsos,  nos dando conta da visão amarga de mundo do autor Fassbinder.

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Em “Sob a Areia” ( 2001) Ozon realiza um dos seus dramas mais fortes, sem nenhum  resquício de humor.
Marie(Charlotte Rampling, num dos grande desempenhos de sua carreira) faz 25 anos de um casamento harmônico com Jean ( Bruno Cremer) e decidem passar uma temporada numa praia no sul da França.

Enquanto Marie toma banho de sol, o marido vai nadar. Mas desaparece. E assim por mais que apresentem evidências (como um relógio que pertenceria ao marido), Marie se recusa a entrar num processo de luto, não reconhece nada como pertencendo ao marido, negando todo o tempo que ele tenha se afogado.

Tudo se passa como se Marie, antes tão determinada e lúcida se transmutasse em alguém com posturas opostas. Mesmo voltando a Paris, dando aulas e com novo companheiro, sua vida não se normaliza, pois ela ainda não aceita que o companheiro de anos tenha morrido.

Ozon, mesmo numa chave bastante distinta de outros filmes seus, também nos apresenta situação bastante  insólita, algo bem caro à sua filmografia. 

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Depois de um drama pesado, “Sob a Areia”, Ozon procurou trabalhar a comédia em toda força enquanto gênero, mas acrescentado também elementos de policial e suspense.
“8 Mulheres” (2002), baseado numa peça teatral de bastante sucesso, reúne um elenco excepcional, com atrizes de várias gerações.

Num casarão, Marcel (Dominique Lamure) é assassinado, quando várias mulheres estavam reunidas. Elas tem certeza que foi uma delas a assassina a ser descoberta, surgindo diálogos cínicos, fortes, compungidos etc. Enfim, uma gama de sentimentos explode, criando até momentos de pura histeria.

São elas: a mais velha Mamy ( o mito do cinema francês Daniele Darrieux); a mais nova Catherine ( Ludvine Sagnier, já mostrando-se  bem talentosa e promissora, mas hoje só chegando ao Brasil, praticamente, seus trabalhos com Christophe Honoré); Gaby ( Catherine Deneuve) ; Agustine ( Isabelle Huppert); Louise ( Emmanuele Béart); Pierrette ( Fany Ardant);Suzan( ( Virginie Ledoyen);  Madame Chanel ( Fimine Richard).

Com os jogos e embates inesperados destas grandes atrizes, num ambiente bastante claustrofóbico, há cuidados para tornar o filme algo que não seja simplesmente um material teatral filmado.
Para isto colaboram bastante as falas que só se concentram no rosto das atrizes ou em tête-à-tête e movimentos internos no casarão.

Quem não conhece as circunstâncias do assassinato terá mais prazer ver o filme, diante de tantos meandros, pistas falsas etc. Mas os que já conhecem terão o grande prazer de acompanhar tantas grandes atrizes contracenando, ora procurando estar calmas, ora caindo na histeria.

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“Swimming Pool- À Beira da Piscina" ( 2003) é obra que tem pontos de contato com “See The Sea”, já comentado.  
Sarah ( Charlotte Rampling) é uma escritora de romances policiais  de prestígio junto à crítica e ao público. Seu editor lhe empresta uma casa de campo para ter bastante tranquilidade para escrever nova obra. Mas surge a filha do editor, Julie ( Ludvine Sagnier)  para nadar na piscina e tomar sol com seu biquíni bastante sensual. .
Este encontro vai perturbar o sossego que Sarah precisa para trabalhar, numa situação onde pode haver vampirização do outro, jogos de sedução, atração homoerótica mútua ou unilateral, inveja da juventude (caindo em si de como o tempo passa inexoravelmente) etc. Ou então todos estes componentes juntos ou em algumas combinações.

Claro que Ozon não fecha sua obra. Quer que o espectador seja quem tente montar este quebra-cabeças emocionalmente desestabilizador, se é que isto é possível. 

Como em “See The Sea”, uma mulher madura com suas fragilidades acaba sendo desestabilizada por alguém bem mais jovem ,com atitudes na vida bem diversas.  

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“O Amor em Cinco Tempos” ( 2004), pleno de ambiguidades, mostra Ozon numa seara que gosta muito de transitar. Aqui pode-se fazer até uma aproximação com filmes do mestre Eric Rommer, onde personagens falam falam falam..., mas o que dizem não expressam o que realmente sentem. Não que queiram o escamoteamento deliberado, mas é que as forças do inconsciente são mais potentes.

O casamento formado por Marion (Valeria Bruni Tedeschi)  e Gilles ( Stéphane Fress) vai entrando  num processo de deterioração, chegando ao divórcio, num primeiro tempo. Em outros quatro, em sentido contrário na linha do tempo de suas vidas, vemos os antecedentes desta relação, suas crises, suas conversas com amigos, até culminar com o primeiro encontro travado numa viagem à Itália.

Nesta trajetória surge até a possibilidade Gilles ser homossexual, algo que fica apenas na sugestão e na cabeça dos espectadores. 
Mas uma vez importa a um filme o como as coisas acontecem, os diálogos ou monólogos interiores de personagens e as revelações que se apresentam nesta “marcha a ré” narrativa.

Vários filmes exploram esta estrutura básica, mas com resultados e estéticas bem diversos tanto de “O Amor em 5 Tempos”, como entre si. Lembremos de alguns deles: “Amnésia” de Cristopher Nolan”; “Irreversível” e de certa forma “Love” de Gaspar Noé; “Besache Mucho” de Francisco Ramalho Júnior,   baseado em peça de Mário Prata de bastante sucesso;  “Namorados Para Sempre” de Derek Gianfrance.

Na vida do casal de “O Amor em 5 Tempos” não chega a haver praticamente traumas, mas há elementos que corroem a vida dele como o diabo que mora nos detalhes.    
  
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“O Tempo Que Resta” ( 2005)  nos mostra um jovem fotógrafo homossexual, Roman (Melvil Poupad)  em câncer terminal. Assim a questão do título se impõe. Como trabalhar as memórias de acontecimentos bons? Como dar conta do presente? “O que poderá ser realizado ainda? Que (re) encontros pode-se promover? etc etc.

Haverá sempre quem diga que o fato de Roman ser homossexual não importa. Mas claro que sim. Ele não tem uma família burguesa típica por deixar, por se despedir etc. Seus caminhos urgentes não passam por aí.

Em “É Apenas o Fim do Mundo” ( 2016 ) de Xavier Dolan  ( Atenção Spoilers- Acompanhar parênteses do início ao fim)  ( o protagonista Louis ( Gaspard Ulliel), um escritor gay, com uns 30 anos, está com uma doença incurável ( Atenção Spoilers) e  vai procurar a  família que vive longe da cidade e que não vê há dez anos.

Mas os problemas de cada um são tantos, o irmão Antoine ( Vincent Cassel ) é  tão desagradável e machista, que o fazem  ir embora sem reconciliação alguma, só tendo a cunhada  Catherine (Marion Cotillard , mais uma vez soberba), que só passou a conhecer nesta volta, como alguém que intuiu tudo o que está acontecendo com ele. Ao final ela recebe um sinal de psiu para ficar calada.

Vivenciando bem que, apesar de querer muito contar a todos como estava e construir doravante algo pacífico, conciliador (mesmo que fosse efêmero), esta família desestruturada não poderia receber este baque, principalmente a mãe que tanto pode ser bastante realista com viver em fantasias. Ainda mais sendo pressionado pelo irmão a voltar para a cidade, inventando um compromisso que o outro não tem. )

Roman em “O Tempo Que Resta” não apresenta esta angústia toda de Louis de “É Apenas o Fim do Mundo”, Vivencia melhor o tempo que lhe resta, indo encontrar na avó Laura ( Jeanne Moreau) o colo de que precisava.

 “O Tempo Que Resta” é o filme mais grave de Ozon que chegou até nós em 2005. Ele não escamoteia a dor de Roman até a morte, não a glamourosa, mas mostra tudo como sendo natural e suave, extraindo poesia, nesta despedida da vida.

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“Angel” ( 2007) , primeiro filme falado em inglês de Ozon, tem uma bela e colorida evocação de época, mas assumidamente tem um tom de folhetim melodramático, o que pode contribuir  para ser a obra menos  prestigiada do autor. O que acho bastante injusto pois Ozon aqui, como Baz Luhrmann em seus filmes (“Moulin Rouge”, “O Grande Gatsby”; “Romeu + Julieta”, “Austrália” etc) não perde a mão de forma algum. Se há exageros é porque assim quis, por uma questão de estilo e estética adequados ao que nos quer vivenciar.   

Angel ( Romola Garai)  é uma mulher pobre, que gosta de romances policiais bem populares. Escreve um e com ajuda do editor Theo (Sam Neill) faz bastante sucesso, ganhando muito dinheiro e  realiza um sonho para exorcizar a pobreza: compra uma mansão, que chama de Paraiso. Mas não consegue sair de seu mundo idealizado, refletido em sua obra e encarar a realidade.
Angel se apaixona pelo pintor Esmé ( Michael Fassbender, no início da carreira, num registro bastante diverso de outros personagens que fez depois). Mas a chegada da guerra vai tornar imperioso que ela saia de sua redoma protetora dos males do mundo.

“Angel” homenageia obviamente “E o Vento Levou....” de Victor Fleming. Voluntariosa, egocêntrica, Angel nos lembra Scarlett O'Hara, assim como Paraiso remete a Tara, a propriedade que a heroína deste grande clássico de Hollywood tanto defende.
Mas tudo fica só homenageado num plano simbólico.

 Claro que Ozon não quer concorrer com “E o Vento Levou...” Há quem diga que seu filme é kitsch, o que não deixa de fazer sentido. Mas dentro de uma proposta cinematográfica de experimentar diferentes gêneros, como já comentando antes, Ozon faz o que persegue. Não erra o tom.

Tudo se passa como se como se seu ar fake, o filme tenha o tom popular dos romances de Angel, num jogo de espelhamento.  
A questão de identidade também comparece no filme com força. Angel criou uma máscara para si, que vai ser difícil tirá-la para saber quem realmente é.

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“Ricky” ( 2008) tem um ponto de partida bastante singular. Um casal de trabalhadores formado por Katie (  Alexandra Lamy), que já tem uma filha e  Paco ( Sergi Lopez) tem um filho, que passa a ser Ricky ( Arthur Peyret), que simplesmente tem o dom de voar.

O que pode ser lúdico, poético, uma bela fantasia real num primeiro momento, acaba por trazer vários problemas. E Katie vai ter de desconstruir o papel de mãe em família tida como institucional, ainda mais na classe social a que pertence.

Ou seja, nova identidade dever ser buscada. Uma perda bastante especial deve ser bastante cuidada. Se desapegar de coisas materiais já pode ser algo difícil. Imaginem se desapegar de um filho.

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“O Refúgio” (2009) traz situações incomuns sem ter nada de bizarro e é desprovido de humor. Sim, Ozon também trabalha nesta chave como vimos nos soberbo “Sob a Areia” e “O Tempo Que Resta” e “See The Sea”.

 Mousse ( Isabelle Carné) e seu namorado Louis ( Melvim Poupadi ) são viciados em drogas. Ele entre em coma, morre e ela descobre-se grávida. Para fugir dos que querem controlar a sua vida,  Mousse refugia-se numa casa de praia. Pouco tempo depois surge Paul ( Louis-Roman Coisy), irmão do falecido Louis  e os dois passam a ter uma relação amorosa.

Mas em que medida Mousse ama realmente Paul ou está consciente ou inconscientemente elaborando uma projeção, no intuito de “trazer à vida” o namorado morto e ter um pai para seu filho?

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“Potiche-Esposa Troféu” ( 2010 ) nos traz Ozon de volta à comédia, mais um dos gêneros em que ele transita muito bem.
Robert ( Fabrice Luchini) trata sua família com bastante tirania,  tanto como  seus empregados na fábrica que tem. Mas eclodindo uma greve e ele sendo sequestrado, sua esposa Suzanne ( Catherine Deneuve) passa de mulher objeto humilhada ao controle da fábrica, logo se transformado numa grande gerente, tratando bem a todos, algo que nem seus filhos, ela mesmo e seu marido não acreditariam que fosse capaz.

Mas se Rober voltar e se deparar com a mulher muito bem no cargo que era seu?

Mais uma vez um personagem de Ozon apresenta nova persona,    troca de  identidade, metamorfosear-se. Depois de saber o quanto é empreendedora, Suzanne vai querer voltar a ser um troféu do 
marido? Claro que não. Mas e o impasse criado, para onde vai?

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Em “Dentro da Casa” ( 2012) temos um dos filmes singulares, inusitados, da carreira de Ozon ( e um dos melhores).

Um professor de Literatura, Germaine ( Fabrice Luchini ), está completamente desgostoso com o que considera a mediocridade dos seus alunos. Ao descobrir uma grande exceção em Claude ( Ernst Umhauer) o incentiva a escrever bastante, para ter uma obra bem pessoal.

Mas o professor não sabe que Claude entra clandestinamente na casa de um colega e escondido com tudo o que ouve e/ou vê transforma em matéria prima para seus escritos.

Vários perguntas já podem inquietar quem me lê. Quando e como Claude será descoberto, se é isto que vai acontecer? O que acontecerá com todos os implicados? Um excelente livro será escrito? Afinal, temos um filme realista ou com tons fantásticos, desafiando nossa suspensão da descrença? Etc 

Note-se que mais uma vez surge a questão da identidade. Ao adentrar a casa, tudo se passa como se além da busca da fonte para suas ideias de escrita, solitário, há o desejo de ser outro, mesmo desta forma que seja,  pertencendo  à esta família ou integralmente numa pura fantasia mesmo. 

*****************************************************”Jovem e Bela” (  2013) é o “A Bela da Tarde” de Luis Buñuel,de Ozon, guardadas as devidas proporções, pois o espanhol  é um dos grandes gênios da História do Cinema. Mas isto não impede que haja pontos de contato. 
 
Isabelle ( Marine Vatch) perde sua virgindade com um jovem alemão, numa viagem de verão com os pais e um irmão menor. A partir daí sua curiosidade e obsessão pela sexualidade é tal que a faz tornar-se uma prostituta por prazer, sem que precise de dinheiro pois pertence ao seio de uma família de classe média padrão.
Mas quando passa a receber dinheiro em sua identidade   clandestina, mais prazer sente, pois está  sendo uma prostituta como as outras, sentindo que seus dotes físicos, seus apelos e atitudes sexuais estão sendo valorizados.

Um dos clientes mais assíduos de Lea (  nome que ela agora emprega)  é um velho senhor, George ( Johan Leysen). Ele morre infartado no leito e a curva dramática do filme sofre forte inflexão.
Uma das sequências mais belas e tocantes se dá quando Vero ( Nathalie Richard), viúva de George, procura Lea, não para recriminá-la, mas para saber como foram os últimos dias do marido. O grande contraste físico e social entre as duas, mas irmanadas sem ciúmes, se referindo ao mesmo homem, é algo a se reter.

Isabelle/Lea sabe que o casamento de seus pais não anda bem. Tem ciência que sua mãe Sylvie ( Géraldine Pailha ) tem um caso-extraconjugal com o negro Peter ( Djedje Apali,) que junto com a esposa são amigos da família de Isabelle; o único apoio que encontra na família vem do pequeno irmão Victor ( Fantin Ravat) .
Mas estes elementos estão longe de explicar o desajuste de   Isabelle em relação ao dito “mundo normal”.

Tudo representa uma fase de descobertas na sua vida ou Isabelle voltará para a atividade vivenciada que mais prazer lhe deu? A perversidade de Ozon se instala com mais força quando ele instiga a nós espectadores, a vontade de ver Lea voltar a se prostituir mesmo.  

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Uma Nova Amiga” (2014) abre com um enterro solene, com pompa e circunstância. Quem morreu foi a melhor amiga de Claire ( Anaïs Demoustie ).

A falecida, já sabendo do seu destino, pediu a Claire que cuidasse do viúvo David ( Romain Duris) . Claire é casada com Gilles (  Raphaël Personnaz ) e este casamento fica cada vez mais em xeque, enquanto Claire se aproxima cada vez mais de David, extrapolando o que seriam meros cuidados.  

( Atenção Spoilers até o fim deste texto sobre “Uma Nova Amiga”)
Claire descobre que David é um cross-dresser, sem dúvida heterossexual, mas que tem o fetiche, desejo e prazer de se vestir com roupas bem femininas. Mas mesmo assim ela acaba se apaixonando por ele. Passando de certo modo a ser dominada, vai até com David a lojas para comprar vestidos.

Uma grande cirando de projeções pode estar acontecendo sobre a qual não temos nenhuma certeza e os personagens também não. Claire e Laura ( Isild Le Besco ) que morreu  tinham uma atração lésbica e agora ao transar com David como mulher, tudo se passa como se Claire  estivesse  com Laura? Afinal David é uma porção de vida que ficou.

Para tudo isto corrobora o fato de Claire passar a ter repulsa mesmo pela vida de cross-dresser de David, justamente quando enxerga com toda clareza o pau que ele tem, uma visão que ela escamoteava nas relações sexuais. Vigorava o clássico “o que os olhos são veem, o coração não sente”.   

Claro que várias outras interpretações podem surgir. Mas fico só com esta para não me estender mais e o leitor enfim vai me ler sobre “Frantz”.

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No Rio de Janeiro ”Frantz”, em sua segunda semana, está agora sendo exibido em uma única sala e horário no Espaço Itaú de Cinema-Botafogo, uma bem mais à altura da beleza do filme e sua esplêndida fotografia em especial. Em outras salas está sendo exibido no Estação Net Ipanema e no Estação Net Rio.

 “Frantz” ( 2016) soa como o melhor trabalho de Ozon,  obra de maturidade, com classicismo assumido, uma extraordinária direção de fotografia ( premiada com o Cesar 2017) onde  sobressai o preto e branco na maior parte das sequências ( o diretor pediu a todos os envolvidos no projeto, que assistissem “A Fita Branca” de Michael Haneke para visão deste e de outros elementos). Mas há lindos momentos coloridos em situações de estado de espírito especiais.

“Frantz” se passa depois do fim da primeira guerra mundial, num período entre guerras, quando longe do nazismo uma obra pacifista ganha mais sentido nas relativizações possíveis.

O filme refere-se tanto a mortes de jovens alemães como de franceses, sendo em muitos casos pessoas enviadas à guerra por conclamação, desejo e força patriótica dos próprios pais, que é o que acontece com “Franzt”, alemão que morreu na guerra e vai ser uma grande sombra, uma fantasmagoria onipresente na vida de muitos personagens.

Anna (Paula Beer, excelente, uma grande revelação) vai sempre depositar flores no cemitério, onde encontra-se o túmulo de seu namorado Frantz que morreu na guerra. Ao perceber que outra pessoa também está depositando flores conhece Adrien, composto por Pierre Niney,  em minuciosa e sensível visão da fragilidade e ambiguidades de seu personagem.

Adrien se mostra tristíssimo, até chorando com a morte de Frantz de quem narra ser amigo. Anna mora com os pais do namorado falecido e após relutâncias iniciais, Adrien é introduzido ao seio desta família, com alegrias tímidas, como o único elo de contato com Frantz.

Um jogo de projeções surge com as histórias que acabam sendo contadas. Até com Adrien por insistência de todos, acaba tocando com o violino que era de Frantz.

De cara uma situação perversa surge. Sobre a grande intimidade que Adrien  passa  da amizade que teve com Frantz, alemão que era grande amante de Paris, cidade de onde veio este até então desconhecido francês, deixa pairar um  clima de homoerotismo não revelado, mas evidente.  
  
Mas isto é plantado por Ozon, conforme já comentado, mais na cabeça dos espectadores, do que entre os que rodeiam Adrien,   pois os personagens mostram grande inocência provinciana e ficam inebriados com esta possibilidade de ter alguém que lhes pode contar como foram os últimos dias de Frantz; seus dias em Paris onde visitaram o Louvre ( onde se impressionaram com um quadro de Monet, que passou a ser o predileto); as lições de violino dadas ao alemão pelo amigo francês, membro de uma grande orquestra e outras recordações doces.

Anna fala muito bem francês e aos poucos  passa dos ciúmes para uma amizade crescente com Adrien, percorrendo espaços e um rio onde ela ia bastante com Frantz. As águas que se tornarão simbólicas (não por acaso conduzem ao cartaz do filme),   inspirarão momentos de intensa dor e prazer possível, tanto no presente, como em embevecidas rememorações.

Acompanharemos trocas de identidade, grandes fantasias, fortes sentimentos de culpa, mentiras objetivas, máscaras que se colam etc, ou seja, elementos tão caros à obra de Ozon, mas aqui apresentados com relativa suavidade em relação a outros trabalhos dele, em meio à dor objetiva ou ao seu disfarce.

Mas este ar suave narrativo lírico, é bom ressaltar, não impede que haja muitos momentos de confrontos, intolerâncias e exasperações.    
Até declarações de amor soam suspeitas, pois podem ser, inconscientemente, tentativas vãs de trazer Frantz de volta à vida por projeções. Algo já visto antes em “Uma Nova Amiga”.
     
Mais uma vez, Ozon explora novas estéticas e gêneros, mas não deixando de manter constantes suas, ampliando ambiguidades. Mas seu olhar para os personagens, a busca por entendê-los e os expor, nunca foi antes tão generosa. O preto e branco empregado, quebrado por sequências coloridas, é completamente pertinente e contribui bastante para este clima.

Tudo se passa como em “Barry Lyndon” de Stanley Kubrick onde ao fim ( Spoilers do início de um parêntesis a outro) ( tendo  Barry sem uma perna, sendo um arrivista desmascarado, novamente pobre e sua ex- Lady pertencente  à  nobreza refazendo suas finanças junto com o filho).... se comenta  que tudo que aconteceu já é passado distante e os personagens que estavam em classes sociais conflitantes, com ódios, rancores, doenças dos nervos etc estão agora igualados.
   
Uma das fortes características dos filmes de Ozon que se faz bastante presente, são as sucessivas imprevisibilidades, dado que a  “psicologia” dos personagens, pelo menos dos protagonistas, estão em constante mutação e consequentemente seus atos tornam-se imprevisíveis. 

Em “Frantz” ocorre a apoteose desta tendência. Coloco psicologia entre aspas, porque existem fatores de ordem psicanalíticas mesmo, como ações desconhecidas, movidas pelo inconsciente, que reverberam na vida dos personagens.

“Frantz” tem vários elementos que poderiam tornar o filme bastante melancólico, mas isto não ocorre, pois o calor humano de muitas situações consegue contornar este sentimento.

Para soar não muito melancólico, Ozon não apela para facilidades, que são típicas de um certo cinema trivial que Hollywood faz, com redenção fácil ao final, dos personagens e do que das circunstâncias em que vivem.

Que expectativas traremos depois que o filme acaba? Até quando mentiras ou autoenganos poderão perdurar? Isto fica para o espectador especular. Aqui Ozon, com cores ambíguas, é  suave e poeticamente perverso.

Atenção Spoilers. Observar o início e fim dos parênteses para retomada do texto.

(Em “Neve Negra” ( 2017) de Martin Hodara, com Ricardo Darin, em cartaz com sucesso, há uma forte mentira apaziguadora que poderá se eternizar. O espectador é até, num relance, convidado para apoiar ser cúmplice. Mas ficará sem saber, se foi por amor mesmo, medo da solidão ou até ganância. Ou tudo isto.

Em “Frantz” temos mentiras bem mais complexas para serem  apaziguadoras. Mas estão muito longe de ser eternas. E nos provoca forte angústia imaginar o que acontecerá quando o “castelo de cartas cair”. Ozon mostra-se com clareza ser perversamente lírico ou liricamente perverso.)  

“Frantz” concorreu a vários prêmios importantes no César 2017, mas este era o ano de reverenciar “Elle” de Paul Verhoeven. E ainda tinha como fortes concorrentes “É Apenas o Fim do Mundo” de Xavier Dolan e num plano menor “Um Instante de Amor” de Nicole Garcia, “Meu Rei” de Maïwennas, mas o prêmio de melhor direção de fotografia lhe estava reservado.

(“Frantz” Trailer Legendado

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A inquietação de Ozon é tal que resolveu realizar depois um filme bem diverso: “L’ Amant Double”, exibido na mostra principal competitiva do Festival de Cannes deste 2017.

 A sinopse nos adianta um filme bem intrigante, o que me faz bastante curioso por assistir, já reconhecendo  marcas autorais, com cruzamentos com o Cinema de Pedro Almodóvar:


Chloé (Marina Vacht) é uma mulher reprimida sexualmente que, constantemente, sente dores na altura do estômago. Acreditando que seu problema seja psicológico, ela busca a ajuda de Paul (Jérémie Renier), um psicólogo. Só que, com o andar das sessões de terapia, eles acabam se apaixonando. Diante da situação, Paul encerra a terapia e indica uma colega para tratar a esposa. Entretanto, ela resolve se consultar com outro psicólogo, o irmão gêmeo de Paul, que ela nunca tinha ouvido falar até então.)

 (L'Amant double (2017) - Trailer (French)

François Ozon é um cineasta que com sua filmografia oferece muitas chaves psicanalíticas por ser melhor desenvolvidas, do que numa simples critica.

Assim como Pedro Almodóvar, Rainer Werner Fassbinder, Todd Haynes, Greg Araki , Gus Vant Saint , Tsai Ming-Liang, Luis Carlos Lacerda, Karim Aïnouz, Hilton Lacerda, Lirio Ferreira etc, Ozon  e suas obras nos instigam a pensar como suas sexualidades desviantes do que seria a “norma”  vão influir bastante em suas estéticas e as formas como abordam suas temáticas, ainda que não se reduzam sempre  claro, a estas questões homoeróticas.

O que foi apresentado sugere quantas questões relativas ao ser humano, de modo geral, foram tocadas.

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 (Filmografia de François Ozon
http://encurtador.com.br/emDLV

Há filmes de Ozon que não foram exibidos no Brasil, nem existem em DVD. 

Há duas coletâneas de curtas metragens que poderiam, além dos outros filmes, ser lançadas em DVD:

1-  François Ozon: A Curtain Raiser @ Other Shorts (1993)

2- X2000: The Collect Shorts of François Ozon ( 2001) 

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PS. Para o texto que me propus escrever, o ideal seria ter revisto todos os filmes (o que só fiz com “Frantz”). O que não foi feito por questão de tempo e indisponibilidade de DVDs. Assim desde já ficam minhas desculpas por eventuais imprecisões.  

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