Por que "Pai Patrão" dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani é "um dos filmes da minha vida"? Leia o conto adiante semiautobiográfico, com as mentiras sinceras da ficção e entenda o porquê. Se não viu o filme, o que está esperando? É umas das obras incontornáveis da História do Cinema!!!
Nelson
O Choro do Pai
Não posso dizer que meus pais foram ausentes.
Eles não poderiam me dar o que não receberam.
Nelson Rodrigues de Souza
Por volta de 1969
A rigor nem o pai de Sérgio sabia por que o estava reprimindo, nem o filho sabia o porquê estava sendo reprimido. Mas o fato é que estava sendo reprimido mesmo. O prazer com que viajava de trem, junto com seu amigo Rodrigo, no trem que saia de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, para a capital, para pesquisarem documentos antigos no Arquivo do Estado para o professor de História, era evidente demais para que seu pai não se incomodasse. O operário Onofre estranhava as inquietações intelectuais do filho que tinha tantos diálogos com esse amigo e o professor e quase nenhum com ele. Sérgio nunca apresentara nenhuma namorada em casa nem conversara, em família, sobre que carreira gostaria de seguir, nem lhe era perguntado. A afetividade e a profissão representavam uma intrincada charada quase que metafísica que o devorava. O pai apenas intuía o perigo de ter um filho com o que se rotulava tendências homossexuais e, ainda como se não bastasse, interessado em questões de teor esquerdizante, insuflado que poderia estar sendo por seu professor Horácio, provável comunista que queria os dois rapazes de 16 anos como discípulos.
As idas semanais de Sérgio e Rodrigo a São Paulo possibilitavam evasões e descobertas inacessíveis no interior. Na Rua Augusta, próxima ao arquivo, o Cine Marachá exibia títulos intrigantes: “Um Dia, Um Gato”, “Elvira Madigan”, “Blow-Up-Depois Daquele Beijo”, “Matou a Família e Foi ao Cinema”, etc. Que universo particular seria esse? Que cultos estariam sendo celebrados neste chamado Cinema de Arte? Quem sabe ali estaria escondida alguma faceta da verdade, mais explícita do que ofereciam as páginas de um livro, algo que se opusesse à mentira que Sérgio enxergava em tudo e quase todos.
Numa das vezes em que entrou no Marachá, um quarentão sentou ao seu lado, em uma sessão de poucos espectadores. O susto dos dois foi enorme ao se reconhecerem: o professor Horácio e ele, um dos seus auxiliares. Sérgio estava matando um tempo que deveria estar empregando na pesquisa e cópia de documentos antigos. Depois de certo constrangimento, cumprimentaram-se, assistiram a “Os Inconfidentes” de Joaquim Pedro de Andrade* em silêncio, trocaram impressões sobre o que viram (o rapaz quis entender melhor por que crianças aplaudiam o enforcamento de Tiradentes no final) e trataram logo de discutir o andamento das pesquisas.
A razão das crianças aplaudirem o enforcamento, enquanto os letreiros se dão sobre vísceras decepadas, foi uma forma de Joaquim Pedro enganar a censura e dar um ar de filme chapa-branca, o que decididamente ele não é. Sérgio descobriu isto anos depois em suas leituras cinéfilas. O professor Horácio, se sabia a razão, não a exteriorizou com clareza. Aliás em sua escola, ninguém dizia com clareza que vivíamos numa ditadura militar.
Em seus momentos de claustrofóbica solidão, Sérgio enxergava o bicho homem como uma ilha rodeada de mentiras por todos os lados. As idas para São Paulo lhe repercutiam como uma salvífica navegação. O amigo subia no trem na Estação de Brás Cubas no quarto vagão. A emoção de Sérgio era forte ao vê-lo entrar de acordo com o combinado e encontrar o amigo com o qual comentava as últimas leituras, amigo que já tinha tido a coragem de enfrentar o tijolaço “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, provocando-lhe uma inveja doce e lhe apresentava autores como Ernest Hemingway, cujos principais títulos encantaram Sérgio, principalmente a novela “O Velho e o Mar”.
Na época havia em cima do enorme Cine Urupema, uma generosa biblioteca municipal onde encontrava títulos indicados pelo amigo e escolhia preciosidades como "O Conformista" de Alberto Moravia, um livro que intuitivamente me levou a pensar que se eu não resolvesse minhas intrincadas questões sexuais, poderia me tornar um conformista fascista. Algo que anos depois, vendo a versão de Bernardo Bertolucci ficou bastante claro. Foi uma leitura de juventude salvífica.
Perto do companheiro sentia-se forte e protegido para enfrentar a sujeira, a miséria exposta, a ameaça latente de roubos no trem e as paradas enervantes e demoradas entre estações, quando se confrontavam com paisagens hostis, vistas muitas vezes através dos buracos nos vidros quebrados. Sérgio pensava na ironia de que havia quem lhes invejasse a condição de usuários de trens precários e lhes lançasse pedras.
Ao chegar à Estação Roosevelt, no Brás, Sérgio observava o frisson especial dos banheiros públicos, com homens expondo ostensivamente seus pênis em ereção. Faltava-lhe coragem para conversar mais com o amigo Rodrigo a respeito do que aqueles atentados ao pudor representavam. Sérgio enxergava São Paulo e seus oito milhões de habitantes de então, aglomerada solidão, com olhos próximos aos de Fellini chegando de Rimini à sua mítica Roma. A fantasia, graças a Deus, era livre, não lhe custava nada. São Paulo e suas labirínticas possibilidades o deixavam atordoado, num universal e particularíssimo frenesi, ainda que eivado de muitas ingenuidades de quem morava no interior. Mas já antevia Caetano: “Alguma coisa acontece no meu coração e só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João”.
O pai só ouvia fragmentos de conversas dos dois amigos. À sua chegada eles se calavam ou mudavam de assunto. Onofre atingiu o seu frágil limite de tolerância, cedendo ao seu temperamento de trabalhador enérgico, sujeito a chuvas e trovoadas que não poderiam cair na linha de montagem em que trabalhava, com seus superiores e sim em casa e tomou uma atitude severa: Sérgio não mais poderia viajar a São Paulo (afinal o professor lhe pagava uma ninharia) nem encontrar Rodrigo, esse desocupado que devia estar metendo bobagens em sua cabeça. Deu-lhe o dinheiro com o qual deveria aparecer em casa com o cabelo cortado e avisou-lhe que a mamata iria acabar: Sérgio deveria arrumar um emprego, mas uma coisa séria. O pai lembrou-lhe, como gostava de repetir que “aqui nesta casa não há um prego que não seja meu!” e era verdade. Assim acrescentou: “não quero ter um filho vagabundo!” Passou-lhe uma dica que soou como um ultimatum: na fábrica de tratores Valmet, onde trabalhava, estavam precisando de controladores de qualidade. Aqueles dois boas-vidas já tinham ganhado o segundo grau dos pais, escolaridade que estava no último mês letivo. Agora que tratassem de dar um jeito na vida. Um filho dele não seria como o cabeludo Rodrigo. Se os pais deste não tinham olhos, ele tinha.
Sérgio caiu em si, com infinita amargura, de como ainda era muito dependente economicamente de sua família. A suprema vontade era dar um beijo de despedida na mãe, um tchau para os irmãos e um adeus definitivo para o pai. Mas ir para onde? Não tinha maiores intimidades com os tios. Em São Paulo conhecia apenas uma tia neurastênica e inconvivível. Amigo mesmo só Rodrigo, mas sobre os dois pairava uma aura de grande afeto e afinidades mescladas com um estranhamento que se avizinhava muitas vezes de uma forte agressividade. Só anos depois Sérgio entendeu melhor o contexto nada original de amor e ódio que permeava a relação. Ao contar ao amigo que estavam proibidos de se encontrar, Rodrigo caiu numa gargalhada que disfarçava o forte nervosismo, mas logo se apaziguou com uma serenidade que beirava a frieza e acrescentou que era hora mesmo de largarem o estágio. Considerava os papéis velhos que copiavam muito entediantes (só o professor lhes apreendia o sentido), estava pensando seriamente em procurar trabalho na fábrica de celulose de Mogi. Sérgio não acreditou que ele estivesse sendo sincero, quis sacudi-lo: ”Mas e as leituras todas, para onde vão?” O amigo construiu uma máscara facial de impassibilidade, sugerindo que a pergunta era tola. Os colegas no pátio da escola aproximaram-se num turbilhão e Rodrigo tratou logo de comentar as próximas partidas de futebol que teriam, que seriam as últimas.
Sérgio intuiu que a noite de 1969 em que se daria a finalíssima do Festival da Record com a consagração de “Ponteio” de Edu Lobo, “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso e “Roda-Viva” de Chico Buarque seria uma noite memorável, histórica para a Cultura Brasileira. Já tinha acompanhado as noites prévias e as classificações. Mas o pai estava imperturbável em seu desejo de assistir um programa humorístico em outro canal, como já fez várias vezes. O filho sentiu a maior vontade de pedir-lhe a mudança de canal. Criou coragem e assim o fez. O pai fez que não o ouviu.
Sérgio saiu de casa sem dar satisfações e foi ter a uma vizinha, fazendo uma campanha para que ela sintonizasse a Record naquela noite que prometia ser inesquecível e foi. Havia sentido antes o impulso de ir ao distrito perto onde morava Rodrigo, mas andava chateado com piadas que o amigo fazia sobre ele quando em grupo, junto aos colegas da escola, algo bem distante do carinho predominante que mostrava por ele quando estavam a sós. A imagem de Rodrigo junto a amigos, debochando do perna-de-pau que ele se mostrava no futebol o perseguia e o inspirava a uma vingança que não tomava forma clara. Na imagem distante e tão próxima de Caetano Veloso sentiu um modo especial e delicado de ser masculino no mundo que o amigo esboçara, mas traíra. Sérgio sentia-se na vida como Caetano, “caminhando contra o vento, sem lenço sem documento”. Estava completamente só no subúrbio: não tinha modelos positivos. Mas agora, depois dessa noite luminosa, era possível sim sentir Alegria, Alegria. Estava ali a expressão do porvir; vislumbrava ali o requinte “da dor e delicia de ser o que era.” Que só mais tarde se clarearia.
Alguém que mitigou também sua solidão em Mogi das Cruzes foi o aparecimento de “Secos e Molhados”, desafiando preconceitos, com muita poesia, com Ney Matogrosso encantando e desafiando as plateias com suas roupas bastante criativas, ousadas e seu canto feminino incomum. Teve total identificação com o show/LP, principalmente “Sangue Latino”:
Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lança
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh'alma cativa
No dia seguinte o pai esboçou o desejo de perguntar aonde o filho tinha ido. Incomodava-o a possibilidade de que ele poderia ter procurado aquele almofadinha. Sérgio, sentindo a pergunta no ar, teve vontade de responder que fora para um lugar do qual nunca mais voltaria: estava definitivamente fisgado por um anzol, um objeto não identificado. Abraçara o dorso de um tigre galopante e nunca mais desceria nem que quisesse. Sua única saída era encarar de frente a vertigem, seguir adiante com a coragem, apesar do medo.
Sérgio chegou a procurar o professor Horácio. Sentiu vontade de pedir-lhe ajuda, conselhos, mas encontrou-o muito nervoso, estressado, repetindo que precisaria viajar por uns tempos. Já havia colhido muitos documentos e um período longe da cidade permitiria na volta uma análise mais produtiva. Sua mulher apresentava um ar ainda mais indisfarçavelmente sombrio, cuidando com impaciência de suas crianças. No olhar dela Rodrigo captou um ressentimento inexplicável, que lhe era dirigido. A impressão que ela lhe passava era que ele, um simples aluno, era responsável por toda a angústia do professor. Em cima do sofá, um jornal aberto deixava exposta a manchete: “Polícia aperta o cerco a terroristas”. Sérgio sentiu-se diante de um discurso de meias verdades, ensaiou perguntas adicionais, mas conteve-se. Afinal também passara ao professor suas meias-verdades, explicando-lhe o abandono do estágio e sua guerra-fria com o pai com economia excessiva. Será que o professor tinha alguma coisa a ver com os cartazes de PROCURA-SE colados nos postes da cidade, deixando à mostra rostos de pessoas ditas terroristas? Afinal o que era um terrorista? Alguém como o seu pai? Afinal ele estava sentindo o mais profundo terror em casa e a única defesa que vislumbrava era uma greve do silêncio.
Se antes já conversava pouco com o pai, sem afeto que o movesse a chamá-lo de papai, agora não lhe dirigia mais a palavra. O pai entendeu o jogo proposto e também evitava qualquer pergunta, até mesmo doméstica. Tinha os outros filhos para as respostas que queria. Se o filho era orgulhoso, ele era mais. E não seria o enigmático professor que ajudaria o abortado discípulo a resolver o impasse.
Na batalha psicológica que se travou entre pai e filho, a mãe Carmem procurou não tomar partido, até que um dia se exasperou com a situação e conclamou o filho a buscar com mais afinco um trabalho. O rapaz havia ganhado vários prêmios no ginásio e colegial, mostrados periodicamente com orgulho à vizinhança pela mãe. Sabendo do valor que a ela dava aos diplomas de honra ao mérito, dirigiu-se ao seu quarto abriu gavetas do guarda-roupa, pegou uns papéis e rasgou-os diante dela na cozinha. Carmem deixou cair a faca e o tomate no chão, sentou-se trêmula e começou a chorar. O filho percebeu que o pranto da mãe desta vez era de uma dor mais profunda e tratou de desfazer logo sua maldade. Os papeis que rasgara eram outros; os diplomas continuavam intactos.
O filho voltou às suas leituras compulsivas de livros que pegava na Biblioteca Municipal, a mãe a seus afazeres. O almoço foi silencioso. Na mente de Sérgio assomava o que tinha lido em “O Velho e o Mar”: “Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado... “. Mas afinal o que teria levado Ernest Hemingway ao suicídio? ... A ideia de um trabalho na fábrica, plantada pelos pais, o agoniava. Imagens de um Carlitos aloprado, compulsivamente apertando botões da roupa das mulheres como se fossem parafusos, o acometiam. Tinha vontade de estrangular de vez essa plantinha tenra que queriam regar para ele. Mas teve de engolir, inteirinho, “Um Copo de Cólera” que gostaria de despejar sobre essa “Lavoura Arcaica” familiar.
Numa noite ao sair do quarto para a cozinha, percebeu que falavam dele na sala. O irmão mais velho argumentava que o que faltava no problemático caçula era fazer muitos exercícios físicos, de forma que encarasse o trabalho com mais coragem. O irmão do meio alegou que tentava conversar, mas tratava-se de um bicho arredio e egoísta. Sérgio aborreceu-se com os comentários, foi para o quarto e encostou a porta com força. Queria que soubessem que esteve ouvindo tudo. Carmem foi até o quarto, apagou a luz e disse enérgica, como outras vezes em que ele estava lendo: “Acorde cedo! Apague a luz que nós não somos sócios da Light!” O filho cobriu-se todo com o lençol e tomou-se de uma raiva que lhe contorceu o corpo feito febre.
Depois que completou seis meses de greve de silêncio, depois dos desentendimentos e emoções amargas gravadas na alma como se marca gado, que foram as proibições do pai, enfim quando já perfazia meio ano de orgulhos calibrados cotidianamente (o pai com seus programas de TV que o filho desprezava; a mãe com um olho no tricô, outro na novela; os irmãos passeando com suas namoradas; Sandro agarrado com seus livros no quarto, com algodões nos ouvidos para que o som irritante da TV não o desconcentrasse), a casa foi sacudida pela notícia da morte da avó paterna Elza, que morava numa casa vizinha.
Ao aproximar-se do quarto do pai, Sérgio vislumbrou-o chorar pela primeira vez. O choro de início tímido tornou-se transbordante. Observou-o a distância com vontade de abraçá-lo, consolá-lo, mas conteve-se. Precisava fruir o belo horrível daquele quadro. Uma estranha satisfação ao constatar que o pai não tinha 100% de ferro na alma, mas uma alquimia de elementos também delicados. À noite do dia seguinte, depois do enterro, quando todos viam televisão, com a cortina bem fechada, para que os vizinhos não comentassem a quebra de luto naquela família, o filho voltou a dirigir palavras ao pai, com certa emoção mesclada de cálculos, quase que inconscientemente estratégicos, até que o tigre o levasse quase que definitivamente para longe da província, por sua conta e risco, alegria, alegria...
Quase... porque voltava a ela nos seus sonhos, pesadelos, escritos, etc. como um ensaio permanente do episódio do filho pródigo. Um retorno que agora é irremediavelmente metafórico ad eternitatus dado que, depois de anos dando volta ao mundo pela Marinha onde se alistara, desligou-se, passou a viver no Rio de Janeiro de traduções e aulas de inglês que o namorado Leandro lhe arrumou e só voltou a Mogi das Cruzes para o enterro do pai, quando derramou lágrimas bem tímidas, imperceptíveis sob os óculos escuros, que ameaçaram se tornar também transbordantes, mas se calaram para sempre, amém. Para sempre?
Terminando o enterro, jantou com a mãe, os irmãos, as cunhadas que conhecera pela manhã, os sobrinhos e sentiu mais que vontade, uma enorme curiosidade de sair para descobrir o que acontecera com Rodrigo, mas lembrando-se que Leandro estava à solta no Rio decidiu voltar para seu apartamento na cidade que o acolhera, viajando naquela mesma noite sob os protestos tímidos da mãe, que lhe pediu que não demorasse mais tanto a voltar. Não ver mais o amigo de adolescência que soube estar casado, com filhos, era a forma final que a vingança outrora esboçada assumira. Precisava que Mogi das Cruzes, Brás Cubas, o trem, não passassem de retratos na parede. Mas como no poema de Drummond, como doem....
Nelson Rodrigues de Souza.
* “Os Inconfidentes” é um filme de 1972, mas achei verossímil e conveniente incluí-lo para uma conversa entre aluno e seu professor de História.
(Conto inicialmente publicado no meu Blog anterior, em 2009, agora bastante revisto e ampliado)
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