segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Inferno da Nossa Destemperança – Um Conto / Uma Fatia de Autobiografia

 a)- O Inferno da Nossa Destemperança – Um Conto 

Anos 80



O que fazer quando a vontade de estar o máximo de momentos possíveis junto a quem se quer muito se sobrepõe inclusive aos receios de firmar um compromisso perante todos e dispõe o espírito a aceitar o jogo, quaisquer que sejam as regras impostas, independentemente das cartas marcadas e dos inevitáveis blefes dos contendores eternamente à espreita do menor deslize? Paulo e Sandra, a despeito de toda reserva que faziam à empreitada do casamento, sociedade que era encarada, sarcasticamente, pelos colegas mais chegados do curso de Comunicação e por eles mesmos, até há pouco tempo, como uma “roubada”, resolveram enfim atender aos desejos terminantemente expressos pelos pais dela, para evitar quaisquer dissabores que perturbassem a comunhão pretendida e optaram por comunicar a todos que se submeteriam aos menores detalhes do ancestral ritual, seja religioso ou civil. Se este era o preço que pagariam por se desejarem, por ansiarem em ter um espaço só deles, sem pragas e maldições lançadas pelos familiares mais conservadores, não lhes importava. Enfrentariam tudo, estoicamente, retendo o riso interior nos momentos convencionalmente sublimes e por fim, o que era mais importante, estariam livres para se curtirem bastante, procurando a máxima distância do ramerrão cotidiano das alegrias catalogadas.




( O título do conto se inspira no deste livro, que muito me impressionou. Aqui quis deixar isto bem claro. Como faz Almodóvar, eu não homenageio, eu roubo mesmo...)-Nelson 


A enamorada dupla ansiava por contar tudo a todos no dia seguinte. A madrugada ultrapassava os seus limites, o sol logo abençoaria uma manhã rediviva e naquele apartamento de Heitor, o pai de Paulo, ainda havia um pormenor que o jovem noivo pretendia ver esclarecido o mais rápido possível para poder enfim presentear o espírito com as expectativas especiais e unicamente ternas, doces. As palavras na boca de Paulo de início soaram frouxas, temerosas, para depois recuperarem-se e se imporem com decisiva argúcia:


- Eu acredito que você mesma já teve a maior vontade de me perguntar mais detalhadamente, mas teve pudor ou o receio de que eu pudesse ficar magoado com as suas suspeitas...

De fato, mais de uma vez Paulo sentira nas impressões, no contorcionismo, nos trêmulos esgares do rosto vívido de Sandra a ânsia de saciar uma curiosidade que a espicaçava, mas ao mesmo tempo fazia-lhe assomar um presságio de que este era um momento perigoso que poderia mexer com os planos que estavam em fase de maturação. Sandra quase pediu ao noivo que se calasse. Dentro de si, a certeza de que o queria, de que o resto não merecia a menor importância, aliada ao medo de receber uma ducha-fria na alegria que lhe contagiava com a eminente união eram o suficiente fortes para que quase gritasse: “Silêncio, por favor. Escutemos apenas nossos corações. Como pulsam os danados!”

Paulo estava tão afoito por desvencilhar-se logo das inquietações que ruminava, que, insensível aos apelos inconfessáveis da noiva, fez questão de dar cabo ao que se tornava imprescindível dizer:

- Eu sei que você se pergunta o que papai está fazendo neste determinado instante. Qual o grau de afetividade que o liga a Robledo. O que fazem os dois neste momento para de modo camarada nos deixar livres neste quarto para traçarmos os nossos planos. A resposta eu sei que você já a tem, oculta, envergonhada, mas acho que nós não temos nada que nos vexar e podemos até gritar em som mais do que audível: Sim, papai e Robledo são amantes como nós, vivem há muito tempo juntos como nós gostaríamos de viver e daí? Que eles nos ensinem como viver durante tanto tempo juntos em harmonia, como conservar essa chama que agora nos envolve e acaricia.

Sandra abraçou o noivo com garra e sussurrou-lhe ao ouvido, alentadora resposta:

- Seu bobo, se você me sentiu preocupada com este assunto, incapaz de encará-lo de frente, você sabe muito bem que isto não é por mim, é por minha família que marca pressão sobre a gente até nos mínimos detalhes do casamento. Eles seriam incapazes de compreender-nos se fossemos viver juntos simplesmente, quanto mais uma relação como a de seus pais. Isto é, de seu pai.

Paulo aproveitou o ato da noiva para trazer à tona, minúcias de maior importância:

- Não. Você disse certo da primeira vez. Eles são meus pais sim. Eu fui criado por eles. Devo muito de minha educação aos dois. Eu não consigo distinguir de quem foram os maiores esforços, os mais arrebatadores sacrifícios. Às vezes penso até que Robledo foi mais atencioso, carinhoso comigo, me fez enxergar as coisas melhor com a sua exuberância ao comentar os fatos, mas depois eu me sinto injusto. A papai não coube apenas a função sexual de pai: “a doação de sêmen”. A ele coube muito mais.

Agora o clima criado era propício a que Sandra saciasse qualquer curiosidade:

- Você já me contou como sua mãe afastou-se de seu pai. Mas você relatou-me tudo muito por cima, nervoso, com pressa. Eu não insisti porque senti que essa história o magoava.

- Minha mãe foi dessas namoradas que meu pai teve quando ainda ensaiava os primeiros passos na vida sexual. Ela gostou muito dele. Meu pai logo abriu o jogo com ela. Tinha-lhe muita ternura, mas seu interesse por ela era restrito. Mesmo assim, como meu pai era fascinado pela ideia de ter um filho, eu nasci. Eles ingenuamente acreditaram que eu fosse um elo suficientemente forte para manter aquela corrente, mas a ligação não foi muito adiante. Ao mesmo tempo em que papai conhecia Robledo, minha mãe enamorou-se de outro homem. Esse novo caso de minha mãe queria os seus próprios filhos, não estava disposto a criar vida afora alguém que não fosse do seu próprio sangue. Já lhe era difícil suportar a ideia de uma mulher “não intacta” e papai e minha mãe então decidiram que o melhor para mim era ser criado por papai mesmo. Junto com Robledo ele havia iniciado com sucesso a implementação de uma gráfica, um trabalho que se não possibilitou a arrecadação de uma grande fortuna, pelo menos nos permitiu que vivêssemos decentemente até agora. Sabe, se seu pai não nos tivesse arrumado esse trabalho na rádio onde ele é diretor, eu iria trabalhar era nas rotativas da gráfica!





O encantamento com Paulo arrefeceu um pouco. A ideia de ver o noivo metido nos labirintos da impressão gráfica não lhe agradava. Gostava muito do trabalho jornalístico que o pai lhes arrumara na rádio: selecionar acontecimentos importantes e se atrever a alguns comentários lhe parecia atividade infinitamente mais criativa, instigante.

Já que aquela era uma noite em que todas as hipóteses, todos os pontos deveriam ser levantados, Sandra não se furtou a fazer uma comprometedora pergunta que lhe fez até esquecer que gostaria de saber também por onde andava a mãe de Paulo atualmente:

- Paulo, você nunca se sentiu atraído por um homem?

Paulo titubeou, assustou-se com a pergunta à queima-roupa. Cansado e trêmulo, procurou esclarecer a sua posição:

- Tem uma fase na vida da gente que queremos experimentar de tudo. Sabe, para mim a homossexualidade nunca foi um fantasma como é para os outros. Eu nunca tive esse medo todo que os homens têm de serem delicados e afetuosos. Eu sempre convivi com a questão da homossexualidade aqui em casa. Papai e Robledo contaram-me tudo desde os oito anos e eu cresci sem essa paranoia toda. Eu já tive aquelas relações que todo mundo tem. Mas foi apenas curiosidade, foi como experimentar drogas, achá-las sem graça e não se viciar, abandoná-la. Minha libido é mesma voltada para o sexo feminino. As mulheres com as suas curvas, os seus meneios, a textura macia de suas peles é que fazem realmente a minha cabeça... Não se preocupe...

- Seu bobo, não olhe pra mim como se eu fosse uma daquelas senhoras paulistas de tradicional família. Eu acho tudo isso tão maravilhoso, tão limpo, tão aberto... Apenas meus pais é que me perturbam, enuviam e assustam.

- Mas nós não temos nada a ver com eles – disse Paula como uma rajada, tentando convencer-se. Mas logo uma aura sombria cobriu-lhes o espírito. Encararam-se com piedosa ternura: não eram tão independentes dos pais dela quanto desejariam. Antes que o sono impedisse as derradeiras revelações, se dispuseram a, na medida do possível, com o mínimo de ficção, omitirem aos perigosos curiosos a relação dos pais do rapaz, que aos olhos conservadores numa mais educada adjetivação, seria rotulada de excêntrica!

O jantar em que os jovens enamorados reuniram os familiares para se conhecerem transcorreu amavelmente. Abílio e Rosângela, os pais de Sandra se limitaram a comentários ligeiros sobre como prepararam o peixe e se atreveram apenas a tentarem entender como transcorriam os trabalhos da gráfica. Robledo, que foi apresentado como padrinho do noivo, com a suavidade habitual de sua voz e o deslizar sem atrito das palavras explicou a modéstia do negócio. Rosângela encantou-se com a grande jovialidade dos acompanhantes do futuro genro, apesar de como ela e o marido, já ultrapassarem com boa margem de segurança os quarenta e cinco anos. Robledo sentiu-se compelido a perguntar à anfitriã se já tinha se submetido a uma plástica, dado o sorriso mecânico que ela apresentava. Em nome das boas maneiras e da polidez, absteve-se.




Terminado o jantar, no sofá da sala, Abílio continuou examinando as visitas, especialmente Heitor, o consogro. A consciência de que Heitor era solteiro o inquietava. Sentiu enorme vontade de explorar esse tema, mas lembrou-se dos pedidos da filha para que não constrangesse o futuro sogro. Sandra já havia colocado os pais a par de tudo que Paulo lhe contara com exceção da questão da homossexualidade. A repulsa em saberem que o pretendente da filha era fruto de pais separados, que não se atreveram a casar, foi enorme. Mas em nome do entusiasmo e felicidade da única filha que tinham (o irmão já estava com a trajetória razoavelmente traçada por eles, casado, com uma cativante filhinha), resolveram conhecer melhor aqueles que futuramente fariam parte de sua família. Abílio e Heitor trocaram opiniões sobre o desabrochar da Nova República e concordaram que por mais embrionário que fosse o processo, esse fato novo os contagiava, lhes restituía o ânimo e a confiança e os tornava menos temerosos de reviravoltas no desempenho econômico de suas atividades. Um pormenor, entretanto, despertou os demônios da imaginação de Abílio: estava acostumado, fora do mundo das mulheres, com vozes nitidamente viris, firmes, decididas, ríspidas até,  se fosse preciso. Por isso a desenvoltura e leveza da expressão de Robledo que comentava com paixão junto a Rosângela, os espetáculos que se destacavam em cartaz, perturbaram os parâmetros habituais que Abílio costumava associar como próprios do mundo masculino. Entretanto, mesmo com essas dúvidas afloradas, a noite terminou sem que nenhum choque cultural mais aprofundado lhe arrefecesse o brilho. Os convivas despediram-se discretamente e se comprometeram a pesquisar uma data mais adequada para a cerimônia de casamento.

No dia seguinte, o matreiro Abílio mergulhou numa pesquisa de outra ordem, com ajuda de alguns pertinentes colaboradores. Uma semana de trabalhos intensivos foram suficientes para que o pai conclamasse a filha para uma seriíssima conversa, na presença de uma mãe atônita:

- Sandra minha filha, eu não vou entrar em maiores detalhes. As conclusões é que são relevantes. Você sabe que eu tenho amigos em toda parte. O Rangel é investigador da polícia. Eu confiei-lhe uma missão espinhosa, mas para a integridade de nossa família é de suma importância...

As pernas de Sandra tremeram. Já vislumbrava de que fato se tratava. Mas procurou relaxar, controlar os nervos, pois caso fosse necessário mentiria com todo ardor possível.

- Instigado por algumas preocupações minhas o Rangel teve o trabalho de entrevistar o maior número de pessoas possível a respeito da conduta de seu futuro sogro.

Sandra ensaiou um “Você não tinha esse direito”, mas considerou mais diplomático ouvir primeiro tudo que o pai tinha para revelar-lhe.

- Realmente minha filha, em relação à situação da gráfica não há nada pendente. Entretanto em relação à conduta, aos costumes, eu e sua mãe temos sérias dúvidas!

Rosângela fez questão de fazer um movimento de cabeça de tal modo que a filha entendesse que estava de total acordo com o marido.

- Todas as pessoas entrevistadas são unânimes em dizer que a única mulher que lhes frequenta o apartamento, com exceção da empregada às sextas-feiras, é você. Um dos porteiros do prédio, com a ajuda de uma pequena quantia, foi claro quando afirmou que nunca os surpreendeu com uma mulher, que os vê, isto sim, sempre juntos em movimento. Empregados da gráfica também confirmaram essa impressão. Eu lamento minha filha, mas embora não tenhamos absoluta certeza, nós temos a desconfortável suspeita de que entre os sócios Heitor e Robledo existe algo além de amizade e interesses comerciais. Será que você não reparou que esse sr. Robledo tem um comportamento um tanto extravagante? Eu sei, não é igual a esses loucos (ou loucas) jocosos que observamos por aí, mas que tem um jeitinho, isso tem...

Sandra reagiu como pode. Gostaria de negar tudo com veemência, mas tinha consciência de que sua face, seus olhos, seus esgares facilmente denunciariam a mentira que as palavras tecessem. Mas lhe seria fatal não tentar:

- Como é que o senhor pode dar crédito a esses repelentes mercenários? Quanta infâmia!

- Mas será que você não percebe o perigo em que nossa família está incorrendo: aceitar em nosso seio, convívio, pessoas de moral tão duvidosa!?

A observação do pai tocou-lhe uma corda mais sensível e Sandra se dispôs a esquecer qualquer cautela que lhe freasse a ira. Toda veemência seria pouca para agora rechaçar os preconceitos:

- Tudo bem. Admitamos que tudo isso seja verdade: que Robledo e Heitor sejam amantes ou sei lá o que...

Rosângela corou, ameaçou intervir. O marido fez-lhe sinal para que ouvisse.

- E eu e Paulo. Vocês dois... O que nós temos a ver com isso? Eles com a vida deles, nós com a nossa. Será que essa coisa óbvia não lhes entra pela cabeça?

Abílio aproveitou a indignação da filha para dirimir de vez as suas dúvidas:

- Tudo bem. Então você confirma que já sabia de tudo! A família de seu futuro marido é chegada a uma pederastia e isso não tem nada demais?...

Sandra enfureceu-se ainda mais:

- Não coloque o Paulo no meio indevidamente...

- Então você confirma que os dois respeitáveis senhores são amantes?!...

Já fora de si, Sandra não conseguiu mais deixar nada soterrado:

- Sim e daí?... O que importa é a minha vida com o Paulo. O resto que se dane.

Rosângela escandalizou-se. Abílio apesar dos ânimos exaltados comemorou internamente a vitória: os seus esforços não tinham sido infrutíferos. Tinha suas suspeitas confirmadas. Agora só lhe restava lançar outra dúvida que abalasse as convicções da filha. A investida foi fulminante e certeira:

- Será que você acredita minha filha que alguém que foi criado nesse ambiente não tenha assimilado todos esses vícios?

- Aonde você quer chegar, papai?

- Eu vou ser claro com você minha filha... Você acredita que esse rapaz que você tornou seu noivo, depois de tantos anos de convivência não seja também um homossexual, não tenha as mesmas taras da família?

- Eu não gostaria de entrar nesses detalhes, mas dado que vocês me provocam eu me atrevo... Eu sei muito bem papai conforme gozo (e você deve saber também mamãe) ...

Rosângela abaixou ligeiramente a cabeça, um tanto vexada.

- Eu sei muito bem quando agrado a um homem! Acredito que nesse ponto eu devo saber mais do que o senhor...

Abílio revidou prontamente a provocação:

- Eu vou ser mais claro ainda minha filha. Essas pessoas são uns artistas! Paulo pode muito bem estar fingindo ao máximo para poder se juntar à nossa família. Quando eu arrumei esse trabalho pra vocês lá na rádio, eu pensei que ele fosse apenas um bom colega de faculdade, mas me enganei. Eu não pensei que vocês fossem chegar a tanto. O negócio do pai dele com aquele padrinho (que peça queriam me pregar, hein?) é uma atividade muito remediada, estacionária. Junto a nós, não! As oportunidades seriam outras. O padrão de vida seria muito mais atraente!... Você está cega Sandra! Abra bem esses olhos, esqueça um pouco os sentimentos, que eles turvam a razão! Nossa família não pode ser profanada por esses aventureiros... “Quem sai aos seus não degenera”. Mas quando os pais são degenerados...

Na mesma noite Sandra relatou a dolorida conversa com os pais ao amante, numa reunião no apartamento de Heitor. A indignação e revolta de Robledo conseguia ser maior que a dos demais. Uma pontinha de culpa que mesmo as vítimas mais inocentes incorporam de seus carrascos, o moveu a tomar a iniciativa. Sugeriu que ele e Heitor fossem urgentemente conversar com os temerosos pais para dissiparem suas desconfianças. Paulo a princípio foi contra, queria ele mesmo ir se defender e dizer poucas e boas ao futuro sogro, mas os demais, cientes do descontrole, ódio e desejo de vingança à que os espíritos ainda jovens são mais suscetíveis, concordaram com a ideia de Robledo. Num segundo round com as luvas já amaciadas, a visita do rapaz seria mais adequada.

Diante de um casal arredio, desconfiado, que não se dava ao trabalho de disfarçar o incômodo que os dois amigos lhe causavam, Heitor resolveu contornar a aura glacial que os envolvia:

- Eu imagino os fantasmas que tem sobressaltado vocês, mas eu acredito que pela felicidade dos nossos filhos seria imprescindível nós deixarmos os nossos preconceitos de lado. Eles simplesmente escolheram viver um para o outro. Não se trata aqui de tempos medievais que muitas vezes se repetem até hoje, em que os pais por meros interesses econômicos é que tratam do casamento dos filhos como se fosse um negócio. Longe de mim tal vontade. Se nós estamos aqui é simplesmente porque soubemos que ao se inteirarem do nosso modo de vida vocês se chocaram. Tudo bem. Isso era previsível. Mas o que não pode ficar em dúvida é a nossa honestidade de propósitos. Os jovens se amam e isso já é suficiente para que nós lhe forneçamos todo o nosso apoio. Não existe nenhum interesse escuso, subterrâneo, envergonhado de atingir a superfície... Eu gostaria de continuar, mas é melhor eu dar a palavra a vocês para que expressem qualquer dúvida que tenham que nós procuraremos dirimir.

Abílio e Rosângela dispensaram o máximo de atenção. Rosângela se fechou em inconfessáveis devaneios delegando ao marido a incumbência de transmitir-lhes as candentes preocupações que os incomodavam. Abílio sentiu uma enorme vontade de que essas duas inesperadas visitas não lhe tivessem batido à porta e solicitado uma conversa séria. Teria sido melhor se tivesse obedecido ao impulso inicial de expulsá-los. Agora era tarde e precisava colocar as suas dúvidas no mesmo patamar de elegância. Depois de um prolongado silêncio envergonhou-se dos infundados receios que acalentou nos últimos segundos em questão e convencendo-se de que estava diante de pessoas de nível rasteiro, de moral cambiante (se é que podia atestar a existência de moral nesse caso) resolveu ser duro e franco como de costume, sem papas na língua, conforme sempre se vangloriava de ser:

- Os senhores não podem garantir-nos o que se passa no íntimo do rapaz. Convenhamos, é uma empreitada muito séria. Eu não posso arriscar a felicidade e bem estar de minha família desse jeito. Eu vou ser claro com os senhores! Para nós pai e mãe são indispensáveis para a criação de uma criança saudável. Foi assim que criamos os nossos filhos e assim o transmitimos a nossa filha. Mas agora me parece que ela está enfeitiçada, hipnotizada por esse rapaz. Eu gostaria que vocês compreendessem que os nossos estilos de vida são diferentes. Ou melhor: incompatíveis! Eu lhes peço que dissuadam os jovens dessa loucura!

Robledo como que fulminado por essas declarações, esse quase manifesto de ojeriza, irrompeu numa apaixonada e como era do seu estilo, ferina, irônica e mordaz defesa:

- Eu soube que os senhores se deixaram perturbar pela minha voz como se fosse o canto de sereias dispostas a fazerem naufragar o grande navegador Ulisses. Mas ora vejam só! Isso é suficiente para colocar o império dos Pereiras a pique...

Heitor pressentiu que a insolência do amigo iria irradiar-se, mas dado que os seus bons modos do início não surtiram efeito, deixou-o livre para arrepiar os pudores mais embotados:

- Mas vejam então! A minha voz pode decidir a felicidade de sua filha! Meus senhores, o que importa é o que os jovens sentem um pelo outro. Agora se o pai é pederasta, a mãe adúltera, o padrinho pedófilo, a sogra lésbica e olha se até mesmo o sogro é um burguês corrupto e leviano, não importa!... Se existir amor mesmo entre eles, o resto é o ... resto. O resto que silencie e não perturbe!

O inflamado discurso de Robledo fez todos levantarem do sofá, sobressaltados. Antes que fossem expulsos dali, Heitor tomou a iniciativa de se despedirem. Antes que a porta se fechasse num forte estalido ele ainda teve a preocupação de lançar as últimas sementes na terra tão inóspita:

- Os jovens farão aquilo que for melhor para eles. Eu não vim aqui para segurar o emprego de meu filho. Minha intenção não era garantir a vocês que comprassem a mercadoria que ela era de boa qualidade. Apenas como a vida que eu e Robledo levamos espanta as pessoas não familiarizadas, nós quisemos era pessoalmente, sem intermediários, dar-lhes todas as explicações que quisessem. Pena que vocês não tenham entendido assim. Vocês estão interessados apenas no futuro, na felicidade dos seus bens materiais. Boa noite!

Antes mesmo que Abílio se atrevesse a qualquer represália na rádio onde os jovens trabalhavam, eles se demitiram. Se antes já haviam aventado a hipótese de morarem juntos, dispensando os compromissos formais, agora estavam mais do que nunca dispostos a viverem como gostariam sem a necessidade de mendigarem nenhuma benção. Paulo e Sandra chegaram até a pensar em selar o compromisso moral de se cuidarem enquanto se merecessem, com um bolo, champanhe e salgadinhos. Mas as indesejáveis lembranças que essa estereotipada trindade pudesse detonar os demoveram de tal ousadia. Simplesmente o casal chegou com as malas de Sandra, cumprimentaram os amantes que dali em diante os teria como ilustres hóspedes e se dirigiram ao quarto para organizarem convenientemente a disposição das roupas no armário. Diante deles o terceiro e menorzinho quarto do apartamento, pronto para receber o novo rebento que por lá viesse dar o ar de sua graça e completar a corrente com um elo ainda mais delicado. A gráfica recebeu um esforçado freelancer disposto a dar uma mão em toda atividade que carecesse de cuidados.

Afastando-se do trabalho na rádio e com dificuldades para arrumar outro (por ser filha do diretor de uma rádio não imaginou que pudesse ter problemas mais tarde), Sandra procurou contornar o inesperado vazio com as leituras que há algum tempo já rotulara de imprescindíveis. Como agora, além de algumas horas de batalha diária espalhando currículos e reagindo a insólitas entrevistas, tinha um bom tempo disponível, mergulharia com força na profissão de leitora contumaz. Provavelmente inspirada pelas leituras, com delicadeza procurou entender melhor o bizarro universo que os pais tanto temiam que ela frequentasse. O que mais a intrigava era a questão do ciúme: ela gostaria de em sua relação com Paulo conseguir o mesmo desprendimento, a ausência de cobranças que permeava as relações de Heitor e Robledo. Ela sentia que o carinho, o amor, o desejo de estarem juntos dos dois era sincero, perdurava. No entanto não conseguia compreender como em muitas noites em que ela fazia questão de que Paulo estivesse ali com ela, Heitor consentia em ficar sozinho, envolvido em exaustivas leituras e filmes, permitindo que Robledo saísse por aí sem destino ao sabor das aventuras fortuitas. Se era certo que quando os dois estavam em casa e demonstravam carinho em sua presença com abraços e beijos calorosos, por mais que procurasse mostrar que encarava tudo naturalmente, por dentro uma reprimida repulsa a exasperava imperceptivelmente, agora quando os amantes estavam cada um envolvido num lazer diverso, a sua inquietação não era menor. Não podia compreender como num sábado à noite em que os amantes de todas as plagas comungavam de uma mesma ânsia, os dois se dessem ao luxo de se dispensarem. Para ela isso era vital e não poderia conceber que numa hora em que a solidão aperta, Paulo não estivesse ali disponível. Imaginou que talvez isso ocorresse porque enquanto os dois amigos trabalhavam juntos, ela passava boa parte do dia só. Mas rejeitou a explicação. Mesmo que ela e Paulo estivessem no lugar deles, com ela isso seria diferente. No trabalho a relação seria ligeira, superficial, formal, em casa não; desfrutaria de toda intimidade. Certa noite não resistiu e inquiriu Heitor:

- Por favor não vá me interpretar mal. Apenas é que eu vivo nessa casa e me sensibilizo com tudo que acontece. Eu posso lhe fazer uma pergunta indiscreta?

- Pode perguntar o que quiser meu anjo. Eu apenas me reservo o direito de não responder aquilo que não quiser...

- Você não se incomoda de ficar aqui sozinho e deixar o Robledo sair por aí, disponível para o que der e vier?

- A vontade que ele tem de sair por aí, encontrar as pessoas é muito maior que a minha. Eu confesso que já perdi a paciência de ir por aí nesses bares e boates. Eu não posso, eu não me sinto no direito de prendê-lo... Logo ele volta!

Paulo encarou a companheira. Gostaria de entender melhor o que se passava em sua cabecinha. Sandra quis aproveitar a boa vontade do sogro e entender melhor a sua posição. Ampliou então a picardia das perguntas:

- Robledo é um homem ainda bem atraente. Não lhe arrepia a ideia de que ele agora neste momento possa estar com outra pessoa?

- Eu procuro não pensar nisto. Claro que se eu presenciar uma cena dessas, isso vai me magoar bastante. Mas o que importa mesmo pra mim é que quando ele estiver comigo esteja realmente por vontade, prazer e não por obrigação.

Heitor sentiu que essa observação chocou os dois. Talvez aquele momento ali que os jovens viviam fosse uma ocasião assim: “ponto a ser assinado”. Procurou então quebrar o possível mal estar se solidarizando com eles e reconhecendo que nem sempre “os britânicos conseguiam manter a fleuma”:

- É claro que muitas vezes nós nos descobrimos fazendo cobranças. Eu querendo que ele fique em casa, ele querendo que eu participe da sua “via-crúcis”. As vezes deslocamos essa discussão e brigamos por uma ninharia. Quantas vezes o Paulo já nos interpelou para que deixássemos de nos desesperar em círculos! Existe um equilíbrio que procuramos atingir, mas isso não quer dizer que a balança não oscile...

Sandra procurou situar-se também:

- Eu não sei. Talvez seja porque eu ainda seja uma tola romântica. Mas eu sou incapaz de perdoar uma infidelidade. Eu ainda acredito que quando o ciúme cede, o amor acompanha...

E beijou o companheiro ardorosamente como se procurasse se certificar de que ele estava ali presente.

Nas visitas que fazia à família, Sandra era recebida com um misto de alegria e frieza. Abílio e Rosângela faziam questão de deixar bem claro que a desejassem de volta ao seu convívio a qualquer hora, não estavam de modo algum satisfeitos com a vida que ela levava. Sandra procurava insuflar-lhes simpatia pela sua nova família, mas o desprezo estampado no rosto dos pais, sem esforço, com economia de traços, era insistente demais para que ela se aventurasse a prolongar o encontro.

Foi após uma acirrada, porém educada discussão pelo atraso de Paulo que a deixou só, além do habitual, que ela lhe transmitiu uma adorável notícia. Se não fosse a inibidora presença de Robledo e Heitor que já estavam a par de tudo, os dois jovens teriam se excedido na defesa de seus pontos de vista e o novo acontecimento perderia um pouco do seu encanto.

- Você nem merece que eu lhe dê a notícia. Mas já que você tem responsabilidade nisso também, eu comunico-lhe Sr. Paulo que teremos em breve um filho!

Alfredinho deu novo alento, arejou aquele apartamento. Robledo e Heitor disputavam com os jovens o privilégio de cuidar do garotinho. Não podiam deixar de se lembrar das noites de vigília que passaram entretidos em cuidados especiais com Paulo. Agora era como se todo aquele encantamento emergisse novamente e aquele árduo aprendizado pudesse agora ser aplicado, escoimado dos sustos e apreensões previsíveis. Quantas dúvidas tiveram sobre a melhor oportunidade de explicar ao pequeno Paulinho de onde veio, quem eram essas pessoas que lhes cuidavam. Embora nunca chegasse a se constituir num sentimento poderoso e paralisante, não puderam se despir do receio de que quando Paulinho soubesse de que modo foi criado, que sociedade era aquela que unia o pai e o padrinho a ponto de serem amigos tão dedicados, o garoto se revoltasse. Relatado tudo com detalhes a Paulinho no limiar dos oito anos de idade, os dedicados pais sentiram que não precisavam ter esperado tanto. A criança encarou a situação com naturalidade, estranhando apenas a promessa que teve que cumprir de não contar nada aos colegas da escola. Um receio, este sim exacerbado, consumiu os dois até a idade adulta de Paulo. Não era a possibilidade de Paulo ser também homossexual que os incomodava e sim, a possibilidade do rapaz, descobrindo-se homossexual e descobrindo um mundo ferozmente avesso a tal manifestação da sexualidade, passassem a culpar os “insólitos” pais pela indução indireta a tal prática, ainda que durante aqueles anos todos de indefinição, amadurecimento, Robledo e Heitor não ousassem defender categoricamente nenhuma das condições. Paulo homossexual num mundo que não tolera essa prática seria um sofrimento que o filho poderia encarar como herança recebida dos pais e em vez de com eles se solidarizar passar a desprezá-los. Por precaução os dois trataram de dar a melhor educação e abertura ao rapaz para não ser surpreendidos com uma dolorosa traição. Uma contraditória sensação de frustração e alívio os arrebatou quando sentiram que a heterossexualidade de Paulo, segundo os cânones convencionais de “normalidade” era um fato. Agora com o neto Alfredinho podiam desfrutar as delícias e gracinhas associadas à infância e deixar as responsabilidades maiores a cargo dos pais.

Os alucinantes cuidados exigidos por uma criança pequena são tais que nos primeiros dois anos Sandra não se incomodou com a condição de desempregada. A alegria em surpreender a criança em suas primeiras descobertas permitiu à jovem mãe esquecer-se de si. Tão logo se sentiu confiante em sua maternidade, a inquietação com a sua realização profissional voltou a lhe doer. Em conversa com Abílio e Rosângela, estes se mostraram preocupados com o destino da filha e do neto: Abílio conclamou a filha a aceitar sua ajuda novamente:

- Sandra você não pode continuar morando indefinidamente naquela casa. Você tem que pensar também na sua vida profissional, no bem estar do seu filho. Olha, um dos nossos apartamentos está desocupado atualmente. É amplo, espaçoso, é só fazer uma boa reforma. Olha, eu estou até disposto a readmitir aquele petulante do Paulo na rádio. Sua mãe pode lhe ajudar no cuidado da criança. Você poderá voltar a trabalhar também. Essa situação sem perspectiva é que não pode continuar.

Sandra titubeou. Não sabia o que responder, sentiu-se, entretanto na obrigação de defender os seus anfitriões:

- Nossa vida até agora até que não tem sido mal. Heitor e Robledo tem nos ajudado bastante. A única coisa é que eu sinto falta de um trabalho, apesar do garoto me dar um trabalho daqueles. Eu penso em ajudá-los na gráfica, também!

- Mas minha filha, aquele não é um ambiente adequado para a criança se desenvolver... Ela precisa de mais espaço. O nosso apartamento seria muito mais saudável. Vocês estariam muito mais livres. Nós, os nossos amigos, poderíamos visitá-los sem constrangimento. Pense bem minha filha, você não pode amesquinhar o futuro de seu filho por um capricho, uma birra infantil. Paulo precisa de um salário mais adequado às necessidades que a educação de uma criança acarreta. Pense bem.

- A decisão não pode ser minha apenas...

Paulo soube da conversa em todas as suas filigranas. Quando soube que Abílio pretendia aceitá-lo e à companheira, sem restrições, na rádio, o seu espírito arejou-se, uma tímida alegria esboçou-se. Tão logo, entretanto soube da ideia do apartamento maior, mais adequado “ao desenvolvimento de uma criança” o júbilo ainda nascente e desconfiado, metamorfoseou-se numa potente indignação:

- Agora eu entendi aonde eles querem chegar. Estão nos comprando com esse emprego e esse apartamento só para que mantenhamos distância de meus pais. Eles querem é manter o neto longe dessas influências que eles julgam perniciosas. Sandra, os seus pais não mudaram nada! Continuam desprezando minha família e a mim também, com certeza. Eles apenas me ajudariam porque estão penalizados com a situação calamitosa do neto: entregue aos cuidados de indivíduos tão pervertidos!... Não é mesmo?

Sandra havia intuído todos esses escusos interesses. Tinha, no entanto, a esperança de que em nome da melhor segurança em relação ao futuro do filho, que Paulo cedesse. Olhou-o apenas, constrangida.

- Sabe Sandra eu já estou enfastiado de trabalhar lá na gráfica, mas nem por isso eu vou me submeter às tiranias do seu pai!

Sandra tentou ainda levantar aspectos que possibilitassem aos dois encarar com outros olhos os fatos recentes. O tom de voz do casal era exacerbado o suficiente para que Heitor e Robledo sem esforço tomassem conhecimento da discussão que se desenrolava no quarto.

- Você tem que entender Paulo, é que de qualquer maneira houve um progresso. Apesar de manterem o preconceito em relação aos seus pais, eles agora enxergam a nossa relação de modo mais saudável. Eles nem mais nos recriminam por não estarmos casados oficialmente. Eu nunca pensei que eles fossem aceitar uma coisa dessas...

- Eu espero que esses panos quentes que você arrumou agora seja fruto de uma filha desesperada na tentativa de desculpar os pais. Deus me livre que seja apenas uma mulher com medo da vida e nostálgica da mordomia paterna que perdeu...

Sandra sentiu-se assaz ofendida. Esmerou-se numa lancinante defesa:

- Será que você não entende que tudo que eu tenho feito é para o nosso filho, que eu tenho me negado nesses meses todos o menor capricho, que eu só tenho vivido para cuidar dele? Será que você não entende que eu tenho me omitido de aprontar um escândalo quando eu sinto que você veio da rua com um perfume novo? Será que você pensa que eu não sei que você está louco para que eu incorpore o liberalismo de seus pais e aceite passivamente as suas pequeninas infidelidades?

Paulo não esperava que o calor da discussão os conduzisse a tais temas. Tentou com pesarosa ênfase colocar o debate nos trilhos:

- Por favor Sandra não misture as coisas. Essa é uma discussão que podemos travar, mas não pode cegá-la das artimanhas que seus pais querem nos aplicar... De qualquer modo eu não quero lhe obrigar a nada. A minha decisão é não aceitar nada dos seus pais, enquanto houver algum interesse comercial por trás. Você decide o que achar melhor... Eu sei que eu deveria ter lhe contado, mas essas aventuras que eu tive foram tão bobas que...

Antes que Paulo terminasse e que ela pudesse acumular razões para se arrepender, num ritmo febril, a voz afiada feito lâmina, Sandra comunicou a sua decisão irrevogável: iria embora com a criança para a casa dos pais. No dia seguinte as roupas de Paulo conquistaram maior espaço no guarda-roupa.

Agoniado, Paulo esteve pronto a disputar a guarda da criança na justiça. Mas ciente de que o velho Abílio pretendia utilizar tudo o que sabia na defesa da filha, optou por deixar o garoto com a mãe, para poupar Heitor e Robledo de qualquer exploração sensacionalista. Em nome do reconhecimento que lhes devotava, se resignou a ver o filho nos fins de semana regulamentares.

O enriquecimento de vocabulário de Alfredinho lançou a mãe aflita e os avós zelosos, alguns bons meses depois, em embaraçosas questões. Toda vez que voltava do passeio com o pai, o avô Heitor e o tio Robledo, o garoto insatisfeito com as horas ralas em que conviveu com a trupe de saltimbancos que se formava no parque, não só queria manter o formidável ritmo dentro de casa, como crivava os avós maternos e Sandra de perguntas embaraçosas. Em certa feita se interessou em entender melhor quem era o tio Robledo: era irmão de papai ou do vovô Heitor? Abílio com medo de não saber mentir coerentemente quis saber da filha o que o pai do garoto poderia ter lhe contado. Sandra tranquilizou-o. Tinha certeza que Paulo saberia como não despertar nenhuma curiosidade irrelevante, fora do tempo e comprometedora para a educação do menino. Ao filho disse simplesmente que Robledo era um amigo do pai e do avô e que por ter nome complicado (Ro-ble-do) seria mais fácil chamá-lo de tio...


Além da febril expectativa do garoto na chegada do fim de semana, quando a gang estaria completa, impressionava a todos a maneira como Alfredinho brincava civilizadamente com a priminha: nada de dar nó no cabelo das bonecas ou furtar-lhes os olhos. Quando o avô Abílio, junto aos netos, se apossou da   pequena metralhadora com a qual presenteara o neto, passou-a para Alfredinho, amarrou um barbante nos pés da boneca da neta e colocou-o sobre os cuidados do neto, este, antes mesmo que o avô terminasse sua onomatopeia de fuzilamento (um-dois-três RA-TIM-...!), assustado, jogou a metralhadora no chão, puxou bastante nervoso o fio e trouxe a pobre Andinha para junto de si, sã e salva, abraçando-a! Upa!

A pessoa é para o que nasce. Logo, os pais de Alfredinho e os avôs paternos compreenderam o caso em questão. Já os avós maternos, empedernidos eternos, não entenderam, ou pior, fingiram não entender.

Nelson Rodrigues de Souza 

( Conto originalmente publicado no meu Blog anterior, agora com revisões e acréscimos )  

b) - Uma Fatia de Autobiografia  

João das Neves 



Alberto Salvá 





















Nos primórdios dos anos 80, antes que fechassem a Embrafilme, fiz no Parque Laje curso de Dramaturgia com João das Neves ( um dos organizadores do show Opinião e criador da montagem clássica “O Último Carro” etc... ) , simultaneamente a um de roteiro com Alberto Salvá, que no mínimo tem a obra-prima “Um Homem Sem Importância”(1971), com Vianinha e Glauce Rocha, sucessos como “A Menina do Lado” (1987), sendo seu último filme “Na Carne e Na Alma”(2011), que ele não viu estrear nos Cinemas, pois faleceu e não pode batalhar pelo filme, tido por alguns críticos, como um dos melhores já feitos sobre jovens quase adultos/adultos quase jovens. 

Apesar das muitas diferenças, os dois convergiam num aspecto: “Escrevam um conto e depois o transforme numa peça, ou filme”. 

Não gostava desta ideia, pois a arte do conto é bastante difícil e não é nada menor. Basta lembrarmos de Júlio Cortázar, grande contista, principalmente, que disse que: “Escrever um romance é como uma luta de boxe que se ganha por pontos. Já escrever um conto é uma luta que se ganha por nocaute!”

Terminado estes cursos no Parque Laje, onde escrevi um roteiro para Cinema e uma Peça, sem passar pelo conto (em outra oportunidade, trago-os aqui para o Blog revistos), no ano seguinte fiz Vestibular para a UERJ em Português- Literatura e passei. Assim trabalhava como Engenheiro num convênio DAC/Infraero, em regime de CLT, durante o dia e estudava à noite e tinha dias em que estava morrendo de cansaço no fim do dia, constatando como esta condição é difícil, ainda mais com o ganha pão que tinha que me exigia muito intelectualmente.  

Tive uma professora excepcional de Teoria da Literatura I, Sílvia, a quem rendo homenagens aqui. Aprendi muito com ela. Mas os cursos de Teoria da Literatura II e III foram muito fracos, bastante inferiores ao I. Isto é, eu estava impedido de ler o que gostasse realmente, sem tempo para ver/rever os filmes desejados, amarrado a um curso que passou a ser de total desprazer. Cheguei a ter uma professora de Português que nos tratava com o mesmo tom com que lidava com suas crianças no colégio. Numa discussão sobre violência saiu-se com esta: “Se a gente plantar a sementinha do amor” (sic).

Se com Alberto Salvá cheguei a estudar contos do então proibidíssimo “Feliz Ano Novo” de Rubem Fonseca, na UERJ nada destes autores proibidos. E se estudávamos Guimarães Rosa era mais pelo seu lado poético místico, do que por qualquer viés social, político. 

Anos depois um ex-reitor da UERJ, Ivo Barbieri, confirmou minhas suspeitas. Durante a Ditadura Militar, autores como Guimarães Rosa eram mesmo instrumentalizados, para afastar discussões políticas e sociais.  

 

Victor Giudice 

Tive como colega um filho do prestigiado escritor Victor Giudice (com quem fiz excelente curso de criação literária anos depois) e o jovem estava também bastante desanimado e descontente com o curso pelas mesmas razões. Acabamos saindo. Tive notícia vaga de que ele foi fazer curso de mímica com Luís de Lima, ator e diretor e especialista nesta arte.   

Eu passei a ver meus filmes e por um ano me dediquei a ler só contos, promovendo varreduras de diferentes autores, nacionais ou estrangeiros, sem esgotar a obra, com raras exceções, como Victor Giudice de quem li todos os livros de contos: de “Necrológio”, “Salvador Janta no Lamas” até “O Museu Darbot e Outros Mistérios” e a novela “O Último Punhal”. Dele só não li ainda seu romance “Bolero” e um texto teatral.  

Ao mesmo tempo, com este tempo pra mim, passei a escrever muitos contos, alguns já impressos no Blog anterior e que vou trazendo pra cá. Mas os considero contos acabados. Não vou sentir banzo por não serem peças de teatro ou roteiros de filmes. Quem quiser se aventurar em transposições, esteja à vontade. 

Relato adiante o porquê resolvi trazer a público estes contos e análises de filmes, dentre outros escritos, além de procurar ser bastante ativo no Facebook etc... 

1- Um xamã de candomblé, no milênio passado, me disse que eu estava absorvendo muita luz egoisticamente, esta não estava saindo de mim para outros e isto estava me fazendo mal. 

2- Um analista lacaniano, também no milênio passado, numa conversa sobre taras, disse que eu tinha uma sim : escrever e engavetar os escritos...Os famosos fantasmas de gavetas.

3- Uma analista lacaniana de outra escola, já neste novo milênio. quando eu contava que tido ido ao Cinema, era implacável: “O diretor fez a sua parte. Você fez o quê mesmo?”.

4- Meu analista yunguiano atual se refere ao cemitério, lugar aonde guardo escritos, sem socializá-los. 

Eu tenho bastante material escrito sobre filmes e peças que assisti, além de sobre livros que li, durante anos. Tenho que organizá-los. 


Fritz Utzeri 

Neste novo milênio, o saudoso jornalista Fritz Utzeri, que ganhou prêmio Esso por reportagem sobre as bombas do Rio Centro que explodiram, graças a Deus, no colo de pau-mandados, viu alguma postagem minha sobre Cinema (possivelmente uma sobre “A Guerra dos Mundos” filme subestimado de Spielberg, onde escrevi: “Saudades dos tempos em que o grande perigo era tubarão nas praias...) e me chamou para escrever sobre Cinema, uma vez por semana, no seu Jornal Eletrônico/Blog Montbläat. 

Fritz depois de Lula finalmente eleito presidente, mas observando os movimentos dele, suas péssimas companhias em palanques, foi o primeiro jornalista a escrever: “Fomos Traídos”. Depois houve a debandada que conhecemos de Chico Alencar, Fernando Gabeira, Heloisa Helena, Cristovam Buarque, dentre outros. E eu que sempre votei no PT, também debandei pra sempre como eleitor. E olha que nem sabíamos ainda do Mensalão e Petrolão, escândalos políticos que eclodiriam.   

Pelo grande prestígio de Fritz aceitei de pronto fazer críticas, mas assumindo que não era profissional da área e sim amador, no sentido de quem ama (não o pejorativo). E pude tratar de homossexualidade livremente, apesar do protesto de alguns leitores. Fritz disse que sofria preconceito por ser gordo e compreendia todos os que sofressem preconceitos por qualquer especificidade e não comungava com isto. O primeiro texto que escrevi foi sobre “Brokeback Mountain” (2005) de Ang Lee. E sempre me vali de fortes spoilers, avisando os leitores, pois acredito que o fato de muitas críticas profissionais soarem débeis vem do fato de que, sem spoilers, sem adiantar acontecimentos, surge uma linguagem um tanto cifrada. E gostaria que os leitores antes vissem os filmes, para depois ler meus textos críticos. 

Muitas das críticas do Montbläat estão no meu Blog anterior e as trarei, revistas (se puder assisto os filmes novamente, quando os tiver em DVD). Já outras, vou procurar nos meus arquivos no computador, revendo o DVD, se for possível.  

Nelson Rodrigues de Souza 

c) Links Associados 

c-1 https://www.youtube.com/watch?v=FSmw8SQV0B0&t=932s 

Um Homem Sem Importância (Alberto Salvá, 1971) [Filme Completo]

O filme retrata a vida de Flávio, um homem "sem importância". Interpretado por Oduvaldo Vianna Filho, o personagem chega aos 30 anos sem uma capacitação profissional que lhe permita viver de um trabalho digno.

Face ao desemprego crônico, Flávio mais uma vez se desentende em casa. Seu pai é um mecânico rude, sem instrução, que vive mergulhado em seu trabalho. O rapaz vai à rua para fazer uma nova tentativa de encontrar trabalho, mas sem qualquer perspectiva, sente que já perdeu a juventude e continua desprovido de chances de realização.

Após ligeira tentativa de aproximação de um grupo jovem e um encontro com Selma, uma mulher desquitada que entende o seu drama, Flávio volta para casa, briga outra vez com o pai e espera um novo dia para continuar a lutar por um lugar ao sol. 

Ano de Lançamento: 1971

País de Origem: Brasil

Idioma do Áudio: Português

IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0201282

Elenco:

Oduvaldo Vianna Filho

Glauce Rocha

Rafael de Carvalho

Lícia Magna

D'Artagnan Mello

Dita Corte Real

Kazuo Kon

Mário Prieto

Célio de Barros 

Premiações:

Prêmio Especial para Salvá, Alberto no Prêmio Air France, 5, 1971, RJ..

Prêmio Coruja de Ouro, 1971, do INC - Instituto Nacional de Cinema de Melhor roteiro para Salvá, Alberto e Melhor fotografia para Almeida, José de..

Prêmio Governador do Estado - SP, 1971 de Melhor argumento para Salvá, Alberto.

c-2 https://www.youtube.com/watch?v=V_PtWGvMbKw

Alberto Salvá - A Menina do Lado (1987)- Filme Completo 

c-3 https://www.youtube.com/watch?v=r7mh0fuRxV8 

Alberto Salvá-  Na Carne e na Alma (2011)- Filme Completo


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