Não querendo ser elitista, mas sendo, o filme passa longe do
trivial variado que se apresenta como filme de terror e suspense, algo como um fim
em si mesmo e credito baixa receptividade do público americano ( ou aqui?) às dificuldades
de entendimento, de reflexões durante e depois
da exibição, de embarcar na montanha russa de sensações perturbadoras crescentes
das inusitadas sequências do gênero.
O fato do espectador acompanhar e descobrir tudo pelos olhos do
personagem da mãe, pode provocar rejeição e dependendo do espectador até um
sentimento de vertigem.
Não tem sentido considerar que Darren perdeu a mão. Ele fez o filme
que quis, para obter os efeitos desejados e cravar na tela alegorias que podem
se sobrepor a outras, se fundirem.
Em “Fonte da Vida” (2006) e “Cisne Negro” (2008) a mão de Darren
realmente pesou. Mas em “mãe!” tudo é
empregado para a força e grande potência do filme, que é propositadamente
brutalista. Não vamos querer aqui o toque de um François Truffaut, um Eric
Rohmer, por exemplo.
Temos uma obra que sintoniza bastante com o mundo em que vivemos,
com tantos fanatismos de ordem religiosa ou não ( como cultos a celebridades
descartáveis) convivendo com variadas formas de destruições e violentações da Mãe-Natureza.
Não foi por acaso que em sua vinda à São Paulo, Darren tenha feito questão de
estampar uma camiseta com hashtag contrária ao desmatamento da Amazônia.
Não foi o homem, por exemplo, que criou estes recentes furacões,
mas suas consequências bastante devastadoras tem a mão dele, nos falam muitos
cientistas. Já há quem diga que chegamos a um ponto de não retorno. O que se
poderia fazer agora é só mitigar.
A violência alegórica do filme contra a Mãe-Natureza em “mãe !” ( aqui
assim , em minúscula, porque apequenada) é mostrada de forma tão terrível que
passa a ser um exorcismo do cineasta em relação a este estado das coisas no
planeta. Um exorcismo que encontra sintonia comigo e com muitos outros que
viram o filme. Já há os que não embarcar
nesta viagem de modo algum. Já ouvi quem prefira ver diretamente os furações e
afins e suas devastações. O filme não suportou.
“mãe!” tem ecos de “O Bebê de Rosemary”( 1969) de Roman Polanski
( é como se fosse este “elevado à décima potência” ); de “Armadilha do Destino” -“Cul de Sac”-1966) do
próprio Polanski onde uma casa é também invadida por estranhos ( mas sem a
dimensão de “mãe!”); de “O Iluminado” (1980)
de Stanley Kubrick, com um escritor em crise criativa; de “O Anjo Exterminador”
(1962) de Luís Buñuel onde personagens confinados sem necessidade passam de uma
civilização hipócrita burguesa à barbárie; de “Violência Gratuita” de Michael Haneke em suas
duas versões ( assisti a filmada nos EUA em 2007, com pontos de contato com “Cul de Sac”).
Há ainda ao final um tanto de “Carrie, a
Estranha” (1977) de Brian De Palma, em ato de vingança.
Mas como ‘mãe!” é estruturado numa sucessão crescente de paranoias,
o cineasta que mais se aproxima é Roman Polanski mesmo, ainda que os diretores
tenham abordagens bem diversas. Polanski procura e consegue ter mão leve para
temas bem pesados.
Isto é exemplar num dos seus grandes filmes pouco lembrados que é
“Lua de Fel” (1992), com a temática do sadomasoquismo abordada com bastante intensidade,
verdade e seriedade, onde o amor comparece, mas vai se deformando com as mais extremas tortuosidades.
Há também em ‘mãe!” elementos
onipresentes em filmes de terror e suspense, pois tem-se uma casa sendo
explorada que é misteriosa e de um idiossincrático poeta.
Assim há sustos com aparições súbitas, manchas ou aberturas no chão
etc assustadoras em “mãe!” que ganham outra dimensão
justamente por sermos colocados pelos sensacionais movimentos de câmera na pele
da protagonista ( mãe) vivida por Jennifer Lawrence, no que é provavelmente o
seu melhor trabalho no cinema. Só não afirmo categoricamente porque não assisti
todos.
( Atenção: Spoilers)
Javier Bardem (poeta) evita compor
um personagem obviamente vilanesco, principalmente para quem
representa, uma divindade com seu lado diabólico. Traz a ele até certa doçura
no olhar, mas é bastante intrigante pela forma como não cede aos apelos da
mulher, que não aguenta mais as invasões sucessivas em sua casa. Ele sempre se
mostra solícito ao desejo da companheira, mas logo a abandona. A solidariedade
cai no vazio.
Dois invasores iniciais são admiradores de sua obra que já teve
prestígio, mas agora ele sofre bloqueio mental. Surgem em forma de multidão mesmo,
querendo comemorar, tirar fotos, levar lembranças, mesmo com destruições etc em
decorrência enfim da criação de um novo poema que acompanha a gravidez da
mulher.
Quando ela vai lhe contar que a criança dá sinais em sua barriga,
ele já terminou o poema, ela o lê comovida pela beleza, pelas experiências que
ali o formavam, mas a felicidade arrefece após a leitura, ao saber que a
editora já trabalha sobre ele. Não foi a primeira pessoa a saber e ler o poema.
Outra vez o sentimento de exclusão a sobressalta.
Aqui o filme também remete ao pacto com o diabo que poderia ter
acontecido em “O Bebê de Rosemary” quando um ator desempregado acaba
conseguindo um emprego, para paranoia crescente e histérica da mulher Rosemary ou senso aguçado de uma
realidade sob o signo do diabo mesmo, com uma assustadora vizinhança.
Bastante curioso é que Javier tem momentos que lembra bastante as
expressões de John Cassavetes neste clássico de Polanski.
Mas é bom colocar aspas fortes neste remete, pois há muitas
ocorrências que testemunhamos mesmo com o personagem da mãe. Não há ambiguidade.
Os primeiro invasores são
compostos por Ed Harris e Michelle Pfeiffer, assustadoramente inconveniente, insidiosa, dissimulada e demoníaca,
num excelente trabalho.
Seriam numa chave de alegoria, Adão e Eva? Depois chegam os filhos brigando pela herança
onde um forte embate de verbal evolui para um físico, que resulta na morte do
irmão mais novo. Caim matando Abel?
A partir daí visitas e mais visitas indesejadas ocorrem para horror
da mãe e e aceitação natural do companheiro,
pois ele não quer desprezar os que admiram sua obra.
Sabemos que a casa onde os dois moram pertence a ele. Foi totalmente
destruída num incêndio e só ela trabalhou e trabalha em sua reconstrução,
enquanto ele dedica-se à sua vida de artista. Mas como é possível? Isto é um
jogo proposto. Uma premissa que sabemos através de uma conversa entre o
personagem de Ed e Bardem. Não esqueçamos que o filme não opera numa chave realista
e sim alegórica.
E a casa é ela. Ela é a casa. Quando sai dela, não avança além dos
domínios da porta. Num belo e incômodo travelling circular, nos damos conta que
a casa está cercada por alta e espessa vegetação por todos os lados. Não há por
onde chegar ninguém. Mas chegam.... Mais um dado apavorante.
Uma grande gema preciosa do poeta, vista com ênfase no início filme,
como instrumento de dar vida a esta casa que, sabemos, tinha passado por um
incêndio, quando quebrada, o deixa transtornado como não o vimos antes.
Ao final do filme, ela é recomposta de forma inaudita, incrível, depois
de elevado grau de escatologia, restaurando uma ordem que nos parecia perdida.
Assim não podemos deixar de pensar em Maria e Deus envolvidos com
suas criações. Ela gerando um filho, ele um poema que pode significar um dos componentes
para criação do universo, mas que a pretexto de ser admirado, este filho (os
frutos da Terra?) vai ser bastante
vilipendiado, passar por horrores, sacrificado
.
São ecos do mundo em que vivemos hoje em vários níveis, com guerras
sem fim, muita intolerância, partidos de direita subindo ao poder ou o rondando,
desastres climáticos e até uma volta de guerra fria nuclear etc.
Mas o Deus que o filme nos apresenta é cheio de ambiguidades.
Poderíamos dizer que traz também o diabo dentre de si. A tolerância com os
invasores se deve a generosidade, tolerância ou extrema vaidade cega?
As asso
ciações bíblicas, com o Velho e o Novo Testamento não são
lineares, automáticas, didáticas. Há uma dinâmica interna no filme que nos
remete a estes elementos, mas a forma como Deus, por exemplo, é representado
pode desagradar muitos cristãos. Adão e Eva são simplesmente evocados, sem
maiores ênfases, dado as condições em que estes surgem, suas personalidades.
Com maior ênfase nos protagonistas, o elenco como um todo é
magnificamente dirigido, nos legando grandes desempenhos.
Javier Barden já algum tempo
merecia um personagem que revelasse novas grandes facetas do seu talento, depois
de “Mar Adentro” ( 2004) de Alejandro Almenábar, “Antes do Anoitecer” (2002) de Julian Schanabel, “Carne Trêmula” ( 1998)
de Pedro Almodóvar.
Mas por mais que seu personagem divindade se mostre cruel com a companheira,
estamos muitíssimo longe ( nesta (s) alegoria (as) de agora) da psicopatia de
seu matador de “Onde os Fracos Não Tem Vez” ( 2008) de de Joel
e Ethan Coen, pelo qual Javier ganhou um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
Darren Aronofsky é um grande
diretor de atores. Vários filmes seus comprovam isto.
Isto se percebe facilmente em “Réquiem Para Um Sonho”-2002 (um dos
grandes filmes já feitos sobre o horror dos efeitos devastadores das drogas
pesadas, como heroína, narrado de forma lisérgica) principalmente com Ellen
Burstyn, esplêndida, como uma mulher que toma pílulas para emagrecer compulsivamente,
com o desejo obsessivo de participar de um programa de televisão, que a tiraria
de uma vida medíocre.
Aronofsky promoveu a volta auspiciosa de Mickey Rourke, conduzindo-o
a um grande desempenho em “O Lutador”( 2009), um filme de desconcertante simplicidade narrativa, relativamente a outros
do autor, mas de emoções bastante intensas e
complexas, Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2008.****
Em “Cisne Negro”, em meio a um filme um tanto embriagado, Natalie
Portman se descola e se impõe como grande atriz ( laureada com o Oscar principal na área), sendo uma bailarina
atormentada pela ideia de perfeição e a concorrência com outra, chegando ao
nível da paranoia.
“Fonte da Vida” numa primeira visão, apesar da beleza plástica, me
pareceu hermético demais, algo que “mãe!”, mesmo com todas suas camadas possíveis
de interpretação, seus delírios, seus “decifras-me ou te devoro”, não é. Em “Fonte da Vida” é difícil destacar e
me lembrar de interpretações
significativas.
“mãe!” pode ser tido também como reflexões doloridas sobre a condição
do artista ( o homem) e sua musa ( mãe). Mas além dela, contribuem para a
criação as bem vindas (para ele), mas malditas invasões para ela.
Nesta chave, uma crítica lembrou apropriadamente o Mito de Sísifo,
neste filme de estrutura circular, onde o poeta uma vez que fez seu poema, logo
terá que se impor a missão de realizar outro. A pedra levada ao alto, cai e
deve ser conduzida novamente a este patamar.
Assim, continuando nesta chave, o desfecho soa como algo feliz, mas
um artista pode sofrer de “depressão pós-parto de uma obra,” necessitando
ansiosamente realizar outra. Neste processo pode surgir um bloqueio criativo.
Na narrativa circular, ela acorda, não o vê ao seu lado e o procura,
como fez antes na abertura do filme. Em
que estado o encontrará?
O trabalho de direção geral de Darren, é impressionante. O domínio
que tem sobre a grande “bagunça”, a perturbadora “anarquia” que cria, com
momentos que até nos remete a uma guerra mesmo etc, é extraordinário, o que mostra que fez o que
quis.
Somos tentados a considerar o filme de uma ordem surrealista, mas
se isto pode ser atribuído a momentos, no conjunto temos uma “loucura com método”,
que não é expressão espontânea e automática do pensamento, ditada apenas pelo
inconsciente, como é o surrealismo.
Darren vem de um trabalho bastante autoral, que comunga com outros
personagens, que vivem em limites extremos, como outros já vistos em sua obra.
Em um ano onde já vimos pelo menos dois grandes filmes de suspense
e terror, “Fragmentado” (2017) de M. Night Shyamalan e “Corra!” (2017) de. Jordan Peele, “mãe!” é o mais forte, original e
potente, mesmo que se detecte influências aqui e ali.
Ainda é bem cedo para o consideramos um clássico do gênero horror e
suspense, como já são “O Iluminado”-1980, “Carrie, a Estranha”-1977, “O
Exorcista”-1974, a trilogia do apartamento de Polanski ( ”O Bebê de Rosemary”-1968,
“O Inquilino”-1976, “Repulsa ao Sexo”-1965) , dentre outros, mas com o tempo
tempo tempo poderá ganhar sim este status.
Na mesma semana estreou “Pendular” ( 2017) de Júlia Murat. Em termos estéticos e ritmos, nada
mais antípodas, mas tanto este como “mãe!” são mergulhos fantasmagóricos e tortuosos
sobre processos de criação de artistas. E tem desfechos que só não são
perfeitos, porque perfeição mesmo não existe.
“Pendular” pode ser visto como um dos filmes, onde menos é mais. Já
“mãe !” é como se mais seja muito mais. Quanto ao primeiro, vejo certos vácuos
numa proposta bastante instigante e interessante. Já de “mãe!” é muito difícil
de tirar os olhos da tela, um segundo sequer, mantendo-se a atenção de forma impressionante. Mesmo os
que detestarem o filme, acredito que não negarão este aspecto.
‘mãe !”, assim como “Dunkirk”(2017) de Cristopher Nolan, “Silêncio”
de Martim Scorsese (2016) , “La La Land” de Damien Chazele” (2016), dentre poucos
outros filmes mais recentes, de grande empenho artístico, são feitos para
explorar os grandes potenciais da Tela Grande dos Cinemas. Vistos na tela
pequena, mesmo as maiores do mercado, não trarão a mesma experiência.
E “mãe !” visto na tela
grande faz da recepção da plateia parte do espetáculo. Quando o assisti houve
um grito vindo dela, por uma aparição súbita, que assusta a protagonista, pois
o filme além de um roteiro bastante original, não deixa de incluir, com já
comentado, efeitos já vistos em outros filmes de terror. Mas aqui é bem aterrorizante
mesmo, pois se trata de um assassino e há o diferencial da câmera subjetiva
onipresente.
Convém não esquecer que assistimos tudo, de modo geral, pelos olhos
desta mãe Maria/Mãe Natureza.
Ao fim de uma montagem de “O Balcão” de Jean Genet que assisti, um
dos personagens quebra a quarta a parede e diz à plateia, algo deste teor: “Agora
voltem para suas casas, seu mundo, onde tudo é mais falso do que aqui”
Um letreiro ao final de “mãe!” poderia nos alertar que o mundo fora
do Cinema é mais aterrador do que o que filme visto.
**** Curiosamente neste mesmo Festival, justamente Jennifer
Lawrence ganhou o Prêmio Marcelo Mastroianni como melhor ator/ atriz) jovem,
com “The Burning Plain”( “Vidas Que Se Cruzam”)
um filme norte-americano de 2008 escrito e dirigido por Guillermo
Arriaga, o roteirista de “Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”.
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