1- “Corpo Elétrico” (2017) de Marcelo Caetano, seus reflexos, suas faíscas.
“Corpo Elétrico” é, sem dúvida, um filme agradável de se assistir. Um corpo realmente bem diferente do que comumente se vê no Cinema brasileiro ou Internacional. Daí já é um ponto de grande atrativo para se ir ao Cinema.
( Continuar por Mais Informações à Esquerda, Mais Abaixo)
Mas em termos de alto astral admiro mil vezes mais “O
Filme da Minha Vida” de Selton Mello. Este não escamoteia graves problemas da
vida de seus personagens de modo algum. (Spoiler: até uma grande amizade nos é
mostrada cruamente em seu lado B bem podre.)
A obra de Selton transborda encantamento e poesia do
começo ao fim, onde vale a máxima de Godard: “todo filme tem começo, meio e
fim, não necessariamente nesta ordem”. O filme de Selton Mello transgride a
linearidade, mas claro que longe de qualquer radicalismo, como vemos em Godard.
Já “Corpo Elétrico” em termos de espontaneidade e naturalidade
com que os personagens GLBTS, das mais variadas falanges, são apresentados é
nota dez. Já por este aspecto é um filme que merece ser visto. Mas ele aspira a
evoluir por fluxos e não como uma narrativa tradicional, onde o que nos dá em
troca nem sempre funciona. O filme em alguns momentos se arrasta.
A mais bela sequência se dá na rua em que planos
frontais com personagens andando vão adquirindo novas configurações à medida
que alguns se agregam e outros ficam para trás, com as conversas mudando, onde
que importa mesmo é a forma dos agrupamentos e não o que é dito.
Elias (Kelner Macêdo), de 23 anos, paraibano, com
distâncias não só físicas com a família, mas também espirituais, de
comunicação, trabalha numa confecção no Bom Retiro em São Paulo e é o epicentro
do filme.
É um personagem cativante. Mas é de se perguntar se
existe alguém realmente assim com sorriso fácil no rosto, quase que diante de
tudo que lhe acontece; alguém que pula de cama em cama, de parceiro em parceiro
e não sente a menor ponta de vazio.
Será que há novas gerações assim e eu esteja defasado,
mal-informado? O diretor disse que trabalhou com pesquisas e descobriu um
ambiente de bastante camaradagem entre gays de diversas circunstâncias ou cor
de pele.
Para reforçar sua tese surge um jovem negro da Guiné
Bissal, para quem a família é tudo e manda dinheiro. Um contraponto ao que
vivencia Elias.
Pena que o filme abandone este ótimo personagem pelo meio do
caminho.
A propósito de “Corpo Elétrico”, Daniel Schenker em O
Globo lembrou dos filmes de Carlos Reinchbah sobre periferias de São Paulo, com pessoas não
vistas em filmes paulistas, de modo geral.
Só que em filmes como “Anjos do Arrabalde” (1997), “Falsa
Loura” (2007) e “Garotas do ABC” (2003)
do chamado pelos amigos Carlão, convivem tanto bastante solidariedade quanto
dissabores, atos de violências expostas, em dramaturgia elaborada.
“Corpo Elétrico” aposta na força dos corpos como
discursos políticos potentes. Só que no mundo de hoje, com tantos problemas
gravíssimos, que acredito não precisar elencar, esta visão se torna frouxa.
“Tatuagem” (2013) obra-prima de Hilton Lacerda” e do
Cinema Brasileiro (curiosamente um dos roteiristas de “Corpo Elétrico”) sobre
uma época na Ditadura Militar em que o discurso dos corpo era realmente bastante
político (aqui representado por um ousando grupo de Teatro em Recife,
equivalente ao potencial transgressivo dos Dzi Croquettes no Rio de Janeiro na
mesma época), já apontava para a melancolia do seu progressivo esfacelamento, clamando
por novas atitudes de todos e de todos os lados.
É certo que vivemos tempos neoconservadores
avassaladores, mas o que se vê em “Corpo Elétrico” que possa se contrapor em
relação a este estado de coisas tão funesto é muito tênue, para não dizer anêmico.
Mesmo que a ênfase mesmo de “Boi Neon” (2016) de Gabriel
Mascaro seja embaralhar o que se espera na vivência das diferenças dos gêneros,
há aqui “corpos mais elétricos”, digamos assim. Ao contrário de Mascaro, Marcelo
em seu filme é um tanto puritano, bem mais sugerindo as sequências de sexo do
que mostrando-as realmente.
“Corpo Elétrico” apostou mais numa construção
quantitativa de personagens, para a comunidade pretendida, mas resvala para a
composição quase que rala dos personagens, com a exceção de Elias.
“Tatuagem” alia
estas duas tendências´, sendo forte qualitativa e quantitativamente, com vários
personagens bem construídos e cativantes. Daí mais um motivo para este ser
muito superior.
Relações de trabalho, principalmente num país como o Brasil,
tendem a ser sempre tensas. Mas a relação de
Elias com sua chefe é algo de grande confiança. Um conflito mal explorado, ou
melhor, esquecido, se dá quando um gerente quer que Elias entenda que seja até
falta de ética, fora de trabalho ter tantas relações com colegas. Isto seria
injusto com os que não privassem desta intimidade. Ele admite que sim. Mas aí? Aonde
isto nos leva?
A sequência final pode apontar para certo conflito forte
que o filme tenha nos negado até então. Mas fica mais a sensação de interrupção
do que de final propriamente dito.
( Spoiler- “Fala
Comigo” (2016) de Felipe Sholl exibido recentemente, também nos dava esta
impressão ao final. Mas o que existe é um final em aberto bem pensado: a
relação entre um jovem de 17/18 anos e uma mulher com tendências suicidas
quando sozinha, tem futuro? O que se vê ao fim é suficiente para uma conclusão?)
Outro problema de “Corpo Elétrico”, bem apontado por
Daniel Schenker em O Globo é que Bom Retiro e suas ruas não passam a ser
realmente como personagens do filme. Andar na multidão de guarda-chuva é muito
pouco, fora outras visões muito tênues.
O Movimento Tropicalista completa 50 anos. O que
aconteceu foi realmente revolucionário, influenciado e interagindo com o
Teatro, Cinema, Artes Plásticas e obviamente com a Música Popular Brasileira.
Acompanhado de tudo isto, surgiu realmente uma grande
mexida na política, pelas vias transgressivas do comportamento, que advinha
tanto com o teor das músicas, como as roupas e afins.
O grupo Secos e Molhados representou também uma
autêntica revolução, principalmente com a forma de cantar, roupa, maquiagem e jeito
de corpo de Ney Matogrosso. Ainda mais agradando
todas as idades e classes sociais,
chegando a encher o Maracanã, num show nunca visto antes, com um público em
total frenesi.
Ney declarou que a Bossa Nova não o influenciou, mas
quando viu Caetano livre, com suas roupas extravagantes para um homem e passou
a conhecer melhor as músicas do movimento tropicalista, pensou algo deste teor:
“É com estes que eu vou”.
Há em cartaz “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”(
2016) de Juho Kuosmanen, obra finlandesa, onde há num banho coletivo, com os esportistas
jogando água uns nos outros, com baldes
e mangueiras, com os corpos nus em movimento, bastante expostos de formas
frontais, laterais, por trás.
Esta bela sequência não está no filme por acaso. Temos
nela corpos por inteiro, sem ferimentos, com água escorrendo pelos corpos. Nada
como os corpos no ringue, sendo feridos e com sangue escorrendo. (E (Spoiler) o
protagonista Olli só escapa de ser massacrado de vez pelo oponente, porque
terminam a luta, quase que num ato de misericórdia.)
Mas se esta sequência tem força internamente no filme,
fora dele não tem nenhuma, nestes nossos tempos tão bárbaros em que já estamos
ficando anestesiados com a visão macabra de tantos corpos mortos por atentados
terroristas, sendo o mais recente em Las Ramblas de Barcelona, lugar escolhido
porque, além do passeio onde o pedestre reina soberano, cheio de bares e
restaurantes etc, representa um lugar de muitos prazeres, de “pecados” (sic)
segundo o Estado Islâmico, conforme comentou o jornalista Demétrio Magnoli na
Globo News.
Neste filme finlandês há o grande dilema universal entre
o que sonhamos para nós e o que sonham fortemente para nós, por nós. ( Spoiler: Olli Mäki
ora reage rebelde, ora fica crédulo e acaba sucumbindo. Numa amarga
lição vai ter enfim a chance de uma vida
pelos seus próprios desejos).
Já em “Corpo Elétrico” todos os personagens gays ou
trans, negros ou brancos, bem jovens, já não tem mais nenhum problema desta
ordem. Sente-se livres para sonhar o que quiserem, dentro dos limites que vida
lhes impõe, como trabalhar numa confecção para ganhar a vida. Ou em shows. Elias
chega a manifestar a animosidades da família, mas ele com 23 anos, não carrega
nenhum fardo sobre isto.
Esta ausência de conflitos desta ordem, mexe com nossa
suspensão da descrença? A mim sim.
Ao contrário da longa, misteriosa e secreta sequência
de orgia, como que maçônica, sob o signo de Thanatos, de “De Olhos Bem Fechados”
( 1999) de Stanley Kubrick ( magnificamente filmada) em um sinistro ambiente, em
“ShortBus” ( 2005) de John Cameron Mitchell temos o oposto.
Shortbus é um lugar aberto a todos, bastante
conhecido, onde se reúnem desde um ex-prefeito, casais gays, heteros ( em crise
ou não), solitários, pessoas em busca de
novas experiências eróticas e até uma terapeuta etc.
Todos em busca de companheiros e prazer, numa celebração
da vida, através da sexualidade. Temos aqui um filme, que sob o ponto de vista
da política dos corpos, infelizmente, ainda que bastante avançado, perdeu parte
de sua potência, quando nos deparamos novamente com tantos corpos despedaçados,
agregando-se ainda os refugiados que sofrem horrores onde vivem e saem em
viagens super arriscadas, para um país que lhes traga esperança de vida.
Quando se assiste filmes de Xavier Dolan como “Tom na
Fazenda” (2013) e “Isto É Apenas o Fim do Mundo” (2016) constata-se o quanto “Corpo
Elétrico” quer abstrair-se da realidade dos grandes preconceitos que envolve a
vida de homossexuais.
No primeiro, Tom (Xavier Dolan) não consegue participar do enterro do parceiro
Guilhaume, nesta condição mesmo, sendo obrigado a fingir que é um amigo apenas,
pelo irmão tremendamente rude de
Ghilhaume, Francis ( Pierre-Yves Cardinal) que não quer que a mãe saiba da
homossexualidade do filho, ameaçando Tom com atos violentos psicológicos e até físicos,
como um quase que estrangulamento.
Nesta complexa teia de relações, surge negação da
realidade, projeções de identidades, homofobia, homofobia internalizada,
histórias aterradoras do passado e até sadomasoquismo.
No segundo, Louis (Gaspard Ulliel), vai de encontro à família
da qual tinha se afastado por 12 anos, para contar que tem pouco tempo de vida,
mas a disfuncionalidade da família é tal que sente esta vontade cada vez mais
escapar-lhe da boca, diante de tantos jogos de farpas mútuas trocadas na
família, havendo apenas a placidez da cunhada Catherine que acaba conhecendo,
construída com sensibilidade por Marion Cotillard. Mas ela é um oásis. A mãe
também seria se não estivesse tão atormentada por tudo o que acontece.
“Corpo Elétrico”, repita-se, merece ser visto pelo
inusitado de mostrar uma ambiente proletário alegre onde convivem gays afetados
ou não, artistas ou não, negros ou brancos, incluindo até um professor de
classe média. Só não tem o potencial político que almeja por este viés, havendo ainda uma
verossimilhança que pode não nos envolver.
A propósito do filme, lembro-me de versos de Caetano
Veloso em “Podres Poderes”:
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval
Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente, mas tudo é muito mau
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais
Será que apenas os hermetismos pascoais
Os toms, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?”
Mas Caetano termina “Podres Poderes” com um tom de
esperança:
“Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais!”
2- Links Associados
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-253055/- “Corpo Elétrico”- Sinopse e Trailer
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-253055/- “Corpo Elétrico”- Sinopse e Trailer
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-221565-
“Tatuagem”- Sinopse e Trailer
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-183523/ - “Dzi Croquettes”- Sinopse e Trailer.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-110133/
- “ShortBus”- Sinopse e Trailer
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-208989/-
“Tom na Fazenda” – Sinopse e Trailer
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-237510/-
“É Apenas o Fim do Mundo”- Sinopse e Trailer
https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44764/ “Podres Poderes”- Caetano Veloso
Ps- O sorriso quase que permanente no rosto de
Elias me remeteu a um filme pouco visto e lembrado, “Oh Lucky Man!- Um Homem de
Sorte”( 1973) de Lindsay Anderson ( de “Se..”, Grand Prix do Festival de Cannes
em 1969), onde Mick Travis (Malcolm
McDowell) tende a manter um sorriso nos lábios e ser inquebrantável, aconteça o
que for, o que fez o crítico José Carlos Avellar taxar a obra, negativamente,
de zen-budista.
Claro que eu
gostei bastante, pois o filme é uma bela alegoria surrealista. O rosto do
protagonista e suas atitudes fazem todo sentido dentro da lógica do filme, que
passa longe de realismo. Quanto mais de naturalismo, como se vê em “Corpo
Elétrico”.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-43983/-
“Oh Lucky Man!- Um Homem de Sorte” - Sinopse e Trailer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário