terça-feira, 22 de agosto de 2017

Movimentos dos Corpos Ainda Podem Ser Políticos com “pê” Maiúsculo?



1- “Corpo Elétrico” (2017) de Marcelo Caetano, seus reflexos, suas faíscas.  
  
“Corpo Elétrico” é, sem dúvida, um filme agradável de se assistir. Um corpo realmente bem diferente do que comumente se vê no Cinema brasileiro ou Internacional. Daí já é um ponto de grande atrativo para se ir ao Cinema.  

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Mas em termos de alto astral admiro mil vezes mais “O Filme da Minha Vida” de Selton Mello. Este não escamoteia graves problemas da vida de seus personagens de modo algum. (Spoiler: até uma grande amizade nos é mostrada cruamente em seu lado B bem podre.)

A obra de Selton transborda encantamento e poesia do começo ao fim, onde vale a máxima de Godard: “todo filme tem começo,          meio e fim, não necessariamente nesta ordem”. O filme de Selton Mello transgride a linearidade, mas claro que longe de qualquer radicalismo, como vemos em Godard.

Já “Corpo Elétrico” em termos de espontaneidade e naturalidade com que os personagens GLBTS, das mais variadas falanges, são apresentados é nota dez. Já por este aspecto é um filme que merece ser visto. Mas ele aspira a evoluir por fluxos e não como uma narrativa tradicional, onde o que nos dá em troca nem sempre funciona. O filme em alguns momentos se arrasta.

A mais bela sequência se dá na rua em que planos frontais com personagens andando vão adquirindo novas configurações à medida que alguns se agregam e outros ficam para trás, com as conversas mudando, onde que importa mesmo é a forma dos agrupamentos e não o que é dito.

Elias (Kelner Macêdo), de 23 anos, paraibano, com distâncias não só físicas com a família, mas também espirituais, de comunicação, trabalha numa confecção no Bom Retiro em São Paulo e é o epicentro do filme.

É um personagem cativante. Mas é de se perguntar se existe alguém realmente assim com sorriso fácil no rosto, quase que diante de tudo que lhe acontece; alguém que pula de cama em cama, de parceiro em parceiro e não sente a menor ponta de vazio.

Será que há novas gerações assim e eu esteja defasado, mal-informado? O diretor disse que trabalhou com pesquisas e descobriu um ambiente de bastante camaradagem entre gays de diversas circunstâncias ou cor de pele.
Para reforçar sua tese surge um jovem negro da Guiné Bissal, para quem a família é tudo e manda dinheiro. Um contraponto ao que vivencia Elias.

Pena que o filme abandone este ótimo personagem pelo meio do caminho.
A propósito de “Corpo Elétrico”, Daniel Schenker em O Globo lembrou dos filmes de Carlos Reinchbah  sobre periferias de São Paulo, com pessoas não vistas em filmes paulistas, de modo geral. 

Só que em filmes como “Anjos do Arrabalde” (1997), “Falsa Loura” (2007) e  “Garotas do ABC” (2003) do chamado pelos amigos Carlão, convivem tanto bastante solidariedade quanto dissabores, atos de violências expostas, em dramaturgia elaborada.

“Corpo Elétrico” aposta na força dos corpos como discursos políticos potentes. Só que no mundo de hoje, com tantos problemas gravíssimos, que acredito não precisar elencar, esta visão se torna frouxa.

“Tatuagem” (2013) obra-prima de Hilton Lacerda” e do Cinema Brasileiro (curiosamente um dos roteiristas de “Corpo Elétrico”) sobre uma época na Ditadura Militar em que o discurso dos corpo era realmente bastante político (aqui representado por um ousando grupo de Teatro em Recife, equivalente ao potencial transgressivo dos Dzi Croquettes no Rio de Janeiro na mesma época), já apontava para a melancolia do seu progressivo esfacelamento, clamando por novas atitudes de todos e de todos os lados.

É certo que vivemos tempos neoconservadores avassaladores, mas o que se vê em “Corpo Elétrico” que possa se contrapor em relação a este estado de coisas tão funesto é muito tênue, para não dizer anêmico. 

Mesmo que a ênfase mesmo de “Boi Neon” (2016) de Gabriel Mascaro seja embaralhar o que se espera na vivência das diferenças dos gêneros, há aqui “corpos mais elétricos”, digamos assim. Ao contrário de Mascaro, Marcelo em seu filme é um tanto puritano, bem mais sugerindo as sequências de sexo do que mostrando-as  realmente.

“Corpo Elétrico” apostou mais numa construção quantitativa de personagens, para a comunidade pretendida, mas resvala para a composição quase que rala dos personagens, com a exceção de Elias.

 “Tatuagem” alia estas duas tendências´, sendo forte qualitativa e quantitativamente, com vários personagens bem construídos e cativantes. Daí mais um motivo para este ser muito superior.

Relações de trabalho, principalmente num país como o Brasil,   tendem a ser sempre tensas. Mas a relação de Elias com sua chefe é algo de grande confiança. Um conflito mal explorado, ou melhor, esquecido, se dá quando um gerente quer que Elias entenda que seja até falta de ética, fora de trabalho ter tantas relações com colegas. Isto seria injusto com os que não privassem desta intimidade. Ele admite que sim. Mas aí? Aonde isto nos leva?

A sequência final pode apontar para certo conflito forte que o filme tenha nos negado até então. Mas fica mais a sensação de interrupção do que de final propriamente dito.

( Spoiler-  “Fala Comigo” (2016) de Felipe Sholl exibido recentemente, também nos dava esta impressão ao final. Mas o que existe é um final em aberto bem pensado: a relação entre um jovem de 17/18 anos e uma mulher com tendências suicidas quando sozinha, tem futuro? O que se vê ao fim é suficiente para uma conclusão?)

Outro problema de “Corpo Elétrico”, bem apontado por Daniel Schenker em O Globo é que Bom Retiro e suas ruas não passam a ser realmente como personagens do filme. Andar na multidão de guarda-chuva é muito pouco, fora outras visões muito tênues. 
  
O Movimento Tropicalista completa 50 anos. O que aconteceu foi realmente revolucionário, influenciado e interagindo com o Teatro, Cinema, Artes Plásticas e obviamente com a Música Popular Brasileira.

Acompanhado de tudo isto, surgiu realmente uma grande mexida na política, pelas vias transgressivas do comportamento, que advinha tanto com o teor das músicas, como as roupas e afins.

O grupo Secos e Molhados representou também uma autêntica revolução, principalmente com a forma de cantar, roupa, maquiagem e jeito de corpo de Ney Matogrosso. Ainda mais  agradando  todas as idades e classes sociais, chegando a encher o Maracanã, num show nunca visto antes, com um público em total frenesi.

Ney declarou que a Bossa Nova não o influenciou, mas quando viu Caetano livre, com suas roupas extravagantes para um homem e passou a conhecer melhor as músicas do movimento tropicalista, pensou algo deste teor: “É com estes que eu vou”.

Há em cartaz “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”( 2016) de Juho Kuosmanen, obra finlandesa, onde há num banho coletivo, com os esportistas  jogando água uns nos outros, com baldes e mangueiras, com os corpos nus em movimento, bastante expostos de formas frontais, laterais, por trás.

Esta bela sequência não está no filme por acaso. Temos nela corpos por inteiro, sem ferimentos, com água escorrendo pelos corpos. Nada como os corpos no ringue, sendo feridos e com sangue escorrendo. (E (Spoiler) o protagonista Olli só escapa de ser massacrado de vez pelo oponente, porque terminam a luta, quase que num ato de misericórdia.)

Mas se esta sequência tem força internamente no filme, fora dele não tem nenhuma, nestes nossos tempos tão bárbaros em que já estamos ficando anestesiados com a visão macabra de tantos corpos mortos por atentados terroristas, sendo o mais recente em Las Ramblas de Barcelona, lugar escolhido porque, além do passeio onde o pedestre reina soberano, cheio de bares e restaurantes etc, representa um lugar de muitos prazeres, de “pecados” (sic) segundo o Estado Islâmico, conforme comentou o jornalista Demétrio Magnoli na Globo News.

Neste filme finlandês há o grande dilema universal entre o que sonhamos para nós e o que sonham fortemente para nós, por nós. ( Spoiler:  Olli Mäki  ora reage rebelde, ora fica crédulo e acaba sucumbindo. Numa amarga lição vai ter enfim a chance de uma  vida pelos seus próprios desejos).

Já em “Corpo Elétrico” todos os personagens gays ou trans, negros ou brancos, bem jovens, já não tem mais nenhum problema desta ordem. Sente-se livres para sonhar o que quiserem, dentro dos limites que vida lhes impõe, como trabalhar numa confecção para ganhar a vida. Ou em shows. Elias chega a manifestar a animosidades da família, mas ele com 23 anos, não carrega nenhum fardo sobre isto.  

Esta ausência de conflitos desta ordem, mexe com nossa suspensão da descrença? A mim sim.

Ao contrário da longa, misteriosa e secreta sequência de orgia, como que maçônica, sob o signo de Thanatos, de “De Olhos Bem Fechados” ( 1999) de Stanley Kubrick ( magnificamente filmada) em um sinistro ambiente, em “ShortBus” ( 2005) de John Cameron Mitchell temos o oposto.

Shortbus é um lugar aberto a todos, bastante conhecido, onde se reúnem desde um ex-prefeito, casais gays, heteros ( em crise ou não),  solitários, pessoas em busca de novas experiências eróticas e até uma terapeuta etc.
Todos em busca de companheiros e prazer, numa celebração da vida, através da sexualidade. Temos aqui um filme, que sob o ponto de vista da política dos corpos, infelizmente, ainda que bastante avançado, perdeu parte de sua potência, quando nos deparamos novamente com tantos corpos despedaçados, agregando-se ainda os refugiados que sofrem horrores onde vivem e saem em viagens super arriscadas, para um país que lhes traga esperança de vida. 

Quando se assiste filmes de Xavier Dolan como “Tom na Fazenda” (2013) e “Isto É Apenas o Fim do Mundo” (2016) constata-se o quanto “Corpo Elétrico” quer abstrair-se da realidade dos grandes preconceitos que envolve a vida de homossexuais.

No primeiro, Tom (Xavier Dolan)  não consegue participar do enterro do parceiro Guilhaume, nesta condição mesmo, sendo obrigado a fingir que é um amigo apenas, pelo irmão tremendamente rude  de Ghilhaume, Francis ( Pierre-Yves Cardinal) que não quer que a mãe saiba da homossexualidade do filho, ameaçando Tom com atos violentos psicológicos e até físicos, como um quase que estrangulamento.

Nesta complexa teia de relações, surge negação da realidade, projeções de identidades, homofobia, homofobia internalizada, histórias aterradoras do passado e até sadomasoquismo.   
   
No segundo, Louis (Gaspard Ulliel), vai de encontro à família da qual tinha se afastado por 12 anos, para contar que tem pouco tempo de vida, mas a disfuncionalidade da família é tal que sente esta vontade cada vez mais escapar-lhe da boca, diante de tantos jogos de farpas mútuas trocadas na família, havendo apenas a placidez da cunhada Catherine que acaba conhecendo, construída com sensibilidade por Marion Cotillard. Mas ela é um oásis. A mãe também seria se não estivesse tão atormentada por tudo o que acontece.  

“Corpo Elétrico”, repita-se, merece ser visto pelo inusitado de mostrar uma ambiente  proletário alegre onde convivem gays afetados ou não, artistas ou não, negros ou brancos, incluindo até um professor de classe média. Só não tem o potencial político que  almeja por este viés, havendo ainda uma verossimilhança que pode não nos envolver.

A propósito do filme, lembro-me de versos de Caetano Veloso em “Podres Poderes”:

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval

Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente, mas tudo é muito mau

Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais
Será que apenas os hermetismos pascoais
Os toms, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?”

Mas Caetano termina “Podres Poderes” com um tom de esperança:

“Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais!”

2- Links Associados

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-253055/- “Corpo Elétrico”- Sinopse e Trailer

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-221565- “Tatuagem”- Sinopse e Trailer

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-183523/ - “Dzi Croquettes”- Sinopse e Trailer.

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-110133/ - “ShortBus”- Sinopse e Trailer

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-208989/- “Tom na Fazenda” – Sinopse e Trailer

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-237510/- “É Apenas o Fim do Mundo”- Sinopse e Trailer

https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44764/  “Podres Poderes”- Caetano Veloso

Ps-  O sorriso quase que permanente no rosto de Elias me remeteu a um filme pouco visto e lembrado, “Oh Lucky Man!- Um Homem de Sorte”( 1973) de Lindsay Anderson ( de “Se..”, Grand Prix do Festival de Cannes em 1969), onde  Mick Travis (Malcolm McDowell) tende a manter um sorriso nos lábios e ser inquebrantável, aconteça o que for, o que fez o crítico José Carlos Avellar taxar a obra, negativamente, de zen-budista.
Claro que eu gostei bastante, pois o filme é uma bela alegoria surrealista. O rosto do protagonista e suas atitudes fazem todo sentido dentro da lógica do filme, que passa longe de realismo. Quanto mais de naturalismo, como se vê em “Corpo Elétrico”.

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-43983/- “Oh Lucky Man!- Um Homem de Sorte” - Sinopse e Trailer.






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