sexta-feira, 5 de julho de 2024

O Amor dos "Fora-da-Lei" do Desejo Hegemônico em Tempos de Cólera

O Amor dos "Fora-da-Lei" do Desejo Hegemônico em Tempos de Cólera



Atenção: Texto com spoilers, ou seja, detalhes fundamentais dos filmes “O Segredo de Brokeback Mountain”,“Capote” e “Crash-No Limite” são antecipados.

O título em português acrescenta o clichê ridículo “O segredo de....”. No texto sobre o filme, este será simplesmente “Brokeback Mountain”, título original.

Ennis Del Mar (Heath Ledger) em "Brokeback Mountain"(EUA/ Canadá/2005) de Ang Lee, em sua infância foi levado pelo pai para ver um "homem que vivia com outro homem" assassinado da forma mais bárbara possível, com estraçalhamento até do pênis ( seu pai provavelmente havia tomado parte no justiçamento). Quando a mulher (Anne Hathaway) de Jack Twist (Jack Gyllenhaal) narra a morte do marido por telefone, que "teria se afogado no próprio sangue" antes de ser socorrido num suposto acidente com pneu explodindo, vem imediatamente à mente de Ennis, flashs da violência que o amante sofreu e que é análoga à que imagina que aconteceu na sua infância, cuja consequência final foi a hedionda cena traumática que presenciou. A ficha cai: seu parceiro da montanha Brokeback Mountain foi assassinado, a mulher dele está mentindo. No encontro com os pais de Jack, Ennis toma conhecimento que o amante frequentava o sítio deles com um amigo. O sonho que Jack não conseguiu realizar com Ennis, com amor, tentou desesperadamente com outro. Talvez com aquele "bonitão" casado que se mostrou entediado com a mulher no baile e sentado junto a Jack lembrou que tinha um lugar acolhedor. Quem pode afirmar ou negar?



Se Ennis tivesse vencido seus traumas e resistências (homofobia internalizada) e decidido acompanhar Jack em seu projeto "de terem um lugar só deles" o desfecho não teria sido muito diferente. A diferença é que provavelmente os dois morreriam e não só Jack, ao menos que tivessem se deslocado para bem longe do atrasado Wyoming (onde se passa o filme), num lugar que não seria um rancho mas menos homofóbico, algo que estava fora das possibilidades dos dois amantes.

Com todo este quadro de eventos bastante pertinentes para o contexto hiper-repressor do Wyoming, há quem ainda desqualifique o trabalho como mais um "martirológio gay". Um ditado popular é a melhor resposta: “pimenta nos olhos dos outros é refresco...”.

Há quem aponte no trabalho de Ang Lee mais um retrato clichê de gays infelizes ("como se não houvesse gays felizes no mundo"). Basta aqui lembrar Jorge Coli na Folha de São Paulo: dois caubóis vivendo felizes num rancho dificilmente geram um bom filme; seria mais um conto da carochinha... E mais: os acontecimentos do filme evoluem de acordo com uma percepção clássica de se fazer cinema, onde um jogo de xadrez emocional intrincado vai sendo construído de acordo com os lances dos personagens (há uma coerência dramatúrgica interna possante).


Há ainda quem de uma forma mais sofisticada considera o caubói Ennis Del Mar, reduzido à solidão e à pobreza do trailer onde passa a morar, "sem armas e sem vilões a combater, representando o tempo que já passou", um homem que sem projeto, "ilustra o arcaísmo desse pensamento que de certo modo continua a pautar o ideário norte-americano, em especial o governo Bush". Trocando em miúdos: quem seria uma representação da "vítima" de um estado de coisas passa a ser "algoz"... Saindo do tema da homossexualidade, é como se o caixeiro viajante de Arthur Miller em “A Morte do Caixeiro Viajante”, iludido com o sonho americano tornado pesadelo, fosse o único responsável por sua encruzilhada existencial e não uma sociedade forjada em mitos de pés de barro. Para quem quiser personagens realmente emblemáticos desse pensamento arcaico que em sua evolução criou este nosso mundo caduco e truculento, é essencial uma visita a "As Pequenas Raposas", peça de Lilliam Hellman (transformada no filme “Pérfida” /The Little Foxes- (1941) de William Wyler com Bette Davies), onde uma elite americana do algodão (os Hubbards), atormentada em trapaças mútuas e fracas resistências, em 1900, à sua maneira choca seu “ovo da serpente” (“Há centenas de Hubbars sentados em salas como esta, em todo o país. Não se chamam Hubbard, mas são todos Hubbards. Eles vão mandar e conduzir o país algum dia. E nós iremos com eles.”- comenta o mais velho, o solteirão Ben).



Ang Lee não cansa de enfatizar que seu filme no fundo é uma grande história de amor. Não deixa de ser verdade: é uma das mais belas histórias de amor do cinema. Mas o que não se pode afirmar é que tanto faz: que poderíamos imaginar personagens heterossexuais naquela situação. Uma ideia capenga, pois todo o roteiro é estruturado de forma a nos mostrar a evolução de uma história de amor ENTRE HOMENS, que só tem os desdobramentos que tem porque são homens! Em “A Filha de Ryan”(1970), mais um grande épico (subestimado) de David Lean, a adúltera Rosy vivida por Sarah Miles tem seus cabelos cortados, mas os requintes de crueldade contra Rosy, não se comparam aos sofridos por Jack Twist, que as reminiscências de Ennis nos fazem prever, dentre outras evoluções da narrativa.








A explosão de Alma (Michelle Williams) na cozinha com Ennis, estando o novo marido na sala, depois de anos contida, não teria a força que tem se o flagra silencioso que deu não tivesse sido num beijo de seu então marido com outro homem, algo que ela nem compreende. 

Para quem se incomoda com a ideia de filmes que abordam ao seu modo a temática do homoerotismo pode-se apelar para álibis como: “Morte em Veneza” (1971) de Luchino Visconti é um filme sobre a busca inatingível do belo; “O Banquete de Casamento”( 1993) de Ang Lee é  uma visão questionadora de laços de família; “Traídos Pelo Desejo” (1992) de Neil Jordan é uma obra sobre a persistência de caráter (no caso sob o signo de Escorpião); “Maurice” (1987) de James Ivory é um retrato do puritanismo e do preconceito; “Querelle”(1982)  de Rainer Werner Fassbinder é um ritualístico jogo de transgressões e quebra de tabus; “A Faca na Água” (1962) de Roman Polanski é um singular retângulo amoroso (dois homens, uma mulher e uma faca....); “Priscila, a Rainha do Deserto”(1994) de Stephen Elliott  é uma ode bem humorada à diversidade; “Da Vida das Marionetes” (1980) de Ingmar Bergman é um passeio em abismos da alma humana; “A Lei do Desejo” (1987) de Pedro Almodóvar é uma temporada no inferno do desejo; “Trinta Anos Esta Noite”(1963) de Louis Malle  (um filme onde a sexualidade do protagonista é um mistério) é uma visão de uma situação limite que é o suicídio; “Deuses e Monstros” (1988) de Bill Condon é um retrato dos fantasmas da solidão na velhice; “Pacto Sinistro” (1951) de Alfred Hitchcock é uma história de obsessão psicótica; “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”(1972)  é um agudo diagnóstico sobre o poder corruptivo do dinheiro; “Plata Quemada” (2000) de Marcelo Piñeiro é uma visão radical da marginalidade; “Memórias de um Espião”(1984) de  Marek Kanievska é uma história suis generis de vingança; “O Beijo da Mulher Aranha”(1985) de Hector Babenco é uma celebração do poder da imaginação e da solidariedade ; “Madame Satã”(2002) de Karim Aïnouz  é uma poética apreensão das cicatrizes da exclusão; “Aimée e Jaguar”¨(1999) de Max Faberbock é um cântico do sacrifício humano; “Mulheres Apaixonadas”(1970) de Ken Russell  é um irônico inventário da alienação que as mulheres podem ter em relação aos mais íntimos sentimentos dos homens; “Coronel Redl”(1985) de István Szabó é uma obra sobre a ruína humana em pactos mefistofélicos; “Festim Diabólico”(1948) de Alfred Hitchcock é um suspense com condimentos da perversidade reativa de minorias discriminadas; “O Pecado de Todos Nós”(1967) de John Houston  é um painel de desejos subterrâneos num ambiente tradicionalmente machista (que é o militar), etc... etc... Mas com “Brokeback Mountain” não tem jeito, pois temos aqui um close temático muito forte: UMA GRANDE HISTÓRIA DE AMOR ENTRE DOIS HOMENS!
























Agora que vivemos a síndrome da crítica fácil a qualquer vestígio de “correção política” fica temeroso lembrar que naquela sociedade de Wyoming, tanto Jack quanto Ennis são de certo modo párias, que vivem de subempregos. O trabalho que os caubóis arrumam como pastores de ovelhas não passa disso. Ennis irá depois trabalhar numa fazenda que não é dele e para a qual tem às vezes de correr, deixando até, apressadamente, os filhos com a mulher que trabalha num supermercado. Jack depois de ganhar uns trocados como peão de rodeios acaba num quase que “golpe do baú”: casa-se com uma mulher rica e argentária, com a qual se relaciona sexualmente com a mesma emoção como se estivesse conversando por telefone, segundo suas próprias palavras. É bom reiterar que fossem outras as condições econômicas dos personagens, eles poderiam com o tempo escapulir daquela arapuca hiper conservadora do Wyoming e procurar sua “Brokeback Mountain” no dia a dia vivido em regiões de mentalidades tolerantes (ou menos intolerantes), pois se passam vinte anos desde que se conheceram em 1963, o que não significaria nenhum mar de rosas, mas inegavelmente uma sensível melhora.


Há quem considere “Capote” (EUA/2006) de Bennett Miller, um filme muito mais importante para os que querem ver o movimento gay avançar, pois Truman Capote (Philiph Seymour Hofman, em extraordinário desempenho) é mostrado com toda sua exuberância intelectual e o fato de ser gay acaba não tendo importância, o que em “Brokeback Mountain” é fundamental. Nada mais falacioso. Capote nos é mostrado como um gay um tanto perverso, sibilino, melífluo, capaz de camuflar sentimentos sórdidos com ar de candura para conseguir seus objetivos, ainda que estes consistam em construir uma obra de arte definitiva. Sua homossexualidade não nos é mais mostrada, por pudor e estratégia do roteiro, mas fica no ar se a identificação de Truman com o criminoso Perry é apenas uma questão de que eles tiveram infância e adolescência com dissabores análogos, pois “os dois nasceram na mesma casa, mas enquanto Truman saiu pela porta da frente, Perry saiu pela porta dos fundos”...ou se há realmente uma atração homoerótica entre os dois. Os caubóis, entretanto, com seu amor genuíno, ainda que desprovidos de um aparato intelectual que seja invejável, vivem uma emoção intensa que talvez o auto-destrutivo Capote nunca tenha experimentado. Desnecessário então concluir que personagens têm mais a dizer às questões que os movimentos gays têm levantando mundo afora...







“Brokeback Mountain” está longe de ser um western tradicional, mas no plano simbólico (com as vestimentas que os personagens utilizam, a exploração das paisagens em grandes panorâmicas, o registro de uma região onde leis do desejo podem ser “fora-da-lei” hegemônica, onde o outro que incomoda pode ser eliminado com a mesma crueldade com que um olhar atravessado num saloon já provoca um tiro na cara, conforme visto em alguns faroestes, etc.) não deixa também de ser western. O mito do caubói machão já foi desconstruído de forma sutil em alguns westerns. Mas insinuações como “mostra o seu revólver que eu mostro o meu” é uma brincadeira perto do que vemos em “Brokeback Mountain”. Assim se a expressão “western gay” não nos ajuda a entender de imediato o filme, pois ele é muito mais complexo do que isso, não deixa de ser uma síntese interessante: não é nenhum absurdo.


Há quem considere uma “patada de elefante” a cena em que Ennis se esforça para fazer sexo anal com a esposa. Mas o que está em jogo aqui é a necessidade que Ennis passa a ter de reviver, ainda que de forma quase que patética, os jogos amorosos que manteve com o parceiro na temporada de trabalho na montanha. Não se trata então de falta de sutileza, mas de uma construção visual de um estado de espírito. Mas será que há papéis sexuais de “ativo” e “passivo” já definidos para toda as temporadas na montanha durante anos? O que sabemos das relações íntimas dos dois neste período todo, depois da explicitação dos contatos iniciais? Nada. Desta forma quando Ennis ao final coloca sua camisa sobre o casaco do parceiro num cabide no guarda-roupa não está reiterando, de forma machista, que ele foi sempre o “ativo” da relação, conforme já especularam. Quando ele diz “eu prometo..” e interrompe a fala, pode estar querendo dizer, é que tem sim “um projeto de vida”: guardar eternamente dentro de si a memória dos momentos felizes que viveram na montanha. Não é simplesmente um casaco que está sendo coberto por uma camisa. É um ser que de uma forma desesperadamente doce tenta reter para si (o casaco coberto, simbolicamente, é o outro que morreu), o que lhe deu sentido à existência. Não foi um amor vivido com a plenitude que poderia ter tido, mas foi um sentimento que ainda preencherá o restante de seus dias. O livro que Jack Twist escreveu no coração de Ennis é uma obra-prima que poderá salvá-lo da autodestruição. A fortuna existencial de Ennis é muito mais poderosa que a atingida pelo aclamado Capote com o sucesso de “A Sangue Frio” e sua consequente auto-dissipação. Capote começa a morrer quando o criminoso Perry é enforcado. Ennis tem na recordação proustiana dos momentos felizes que viveram na montanha, uma possível alavanca para o enfrentamento dos segundos, minutos, horas, dias, anos da “vida que segue”...

De acordo com a matéria “Conservadores americanos queixam-se de guinada à esquerda do Oscar” (AFP-7/03/2006) temos:

"Syriana - A Indústria do Petróleo"(2005) de Stephen Gaghan, filme que rendeu a Clooney o Oscar e que critica as corporações e a intrincada geopolítica do petróleo, não foi precisamente o que mais causou escândalo nos rincões dos Estados Unidos. Esta honra correspondeu a " Brokeback Mountain", sobre o amor homossexual entre dois caubóis.




Segundo os conservadores, esta é uma história que os americanos do centro do país provavelmente nunca chegarão a ver.”

"Não acho que os Estados Unidos estejam prontos para uma história de amor como esta", disse na época Peter Sprigg, vice-presidente de política do FRC (Conselho de Investigação Familiar) ao jornal Los Angeles Times.”

Num país em que cenas de violências explícitas no cinema sempre foram muito mais filmadas sem pudor e toleradas do que cenas de sexo (como é puritano o considerado tórrido “Corpos Ardentes” (1981) de Lawrence Kasdan!; neste sentido o cinema brasileiro mesmo com muitas vulgaridades, dá um banho no cinema americano) não é surpreendente que um filme que nos mostra homens viris em ato de sodomia, se beijando e com olhares e gestos de carinho (sendo que as cenas de violência são mostradas de forma elíptica), tenha assustado mais Hollywood e os acadêmicos que deram o prêmio de melhor filme a “Crash-No Limite”, onde há roubos, assassinatos, explosões de carro, acidentes, racismos de todos os matizes e etnias, constrangimentos psicológicos e onde a cena erótica mais ousada é uma apalpadela safada que um policial branco (que depois se mostrará um filho dedicado ao pai doente) faz numa revista a uma negra na presença do marido, suspeitos de um assalto (mais tarde este policial se redimirá salvando esta mulher de um acidente...)....Não se trata aqui de querer dar mais importância ao Oscar do que ele tem e mereceria, mas um filme distribuído mundialmente com a chancela de ”Oscar de Melhor Filme de 2005”, num mundo onde a homofobia grassa como uma pestilência, com a força e comunicabilidade que Ang Lee atinge em seu apogeu até aqui, seria muito bem vindo. Autoridades chinesas sinalizaram que não aprovarão a exibição do filme neste país que tem causado inveja pelas suas altas taxas de crescimento econômico, mas cuja mentalidade autoritária criada por uma gerontocracia, trata seus cidadãos como crianças. Mas os DVDs piratas pululam por lá. Há muita vida ainda latejando “do outro lado da cidade proibida”...


Não há saída para os movimentos de emancipações dos grupos GLBTQIPA+ do que a antropofagia oswaldiana: “comer o que vem de fora”, “mastigar” e devolver uma coisa nova. Noutras palavras: “corroer o sistema por dentro”. Uma operação arriscada sem dúvida. Mas é a única que nos permite sair da inação e do desespero. Ganhar o Oscar principal e usufruir de seu prestígio não seria uma atitude cínica, mas sim um ato legítimo de luta. Não veio. Paciência. Combateremos nem que seja nas sombras, como os heróis de “Spartacus”(1960) de Stanley Kubrick.

Histórias de gays em que a felicidade “corre solta” também podem ser criadas. Mas tem de ter um trabalho de dramaturgia muito poderoso por trás, pois não há obra de arte sem conflitos. A realidade, entretanto, teima em conspirar contra estas histórias coloridas conforme se pode depreender das notícias sobre violência homofóbica, seja contra militantes gays em Curitiba (com descaso e mais violência da polícia), o assassinato por um bando facínora de um gay de 14 anos em São Gonçalo, espancado até a morte, dentre vários casos que podem ser enumerados, nos imprimindo o desconfortável sentimento de que “o Wyoming é aqui e agora”...

Para os que porventura desconfiem que eu esteja “legislando em causa própria”, lembro que gosto muito de todos os filmes citados, principalmente as obras-primas “Morte em Veneza” e “Mulheres Apaixonadas” (esta adaptação sensacional de Ken Russel para o cinema do romance homônimo de D.H.Lawrence é o filme com maior tensão (homo) erótica que já assisti), mas ainda que não seja um espectador exemplar das Mostras Mundo Gay do Festival do Rio de Janeiro tinha e da Mostra da Diversidade Sexual (Mundo Mix), organizada por André Fisher anualmente, quando chegava ao Rio de Janeiro atrevo-me a dizer que, do que tenho visto, pouco tem me agradado. Ainda que tematicamente muitos deles sejam atraentes, os roteiros são precários e em termos estéticos propriamente ditos deixam muito a desejar*. Daí o espanto e o prazer quando surge uma obra como “Brokeback Mountain”, com sua pujança em todos os níveis e com uma aura de filme alternativo mainstream. Biscoito finíssimo para as massas. Aleluia!

Brokeback Mountain ganhou todos os principais prêmios da temporada começando pelo Leão de Ouro em Veneza, depois de Associação de Produtores. de Roteiristas, Globo de Ouro, Bafta´, Associações de Críticos. Só não caiu nas graças do Sindicato dos Atores e estes foram decisivos para um dos maiores absurdos do Oscar : Melhor Filme para “Crash-No Limite” de Paul Haggis, um filme coral meia boca, deixando um Oscar de Melhor Direção para Ang Lee, como consolo. 




  

Ps. Este texto foi publicado originalmente no jornal eletrônico Montblãat, sendo feito então correções, cortes e acréscimos.

* Na época de Brokeback Mountain foram exibidos dois filmes do selo Festival Filmes que tratam de diferentes formas da questão homossexuais X adoção&convivência com menores de idade. Tanto “De Repente, Califórnia” (EUA/2007) de Jonah Markowitz, exibido em 2009, como “Patrik 1.5” (Suécia/2008) de Ella Lemhagen, exibido em 2010, são filmes descolados que tratam as relações homoeróticas de frente, sem culpas, apresentando argumentos interessantes. O problema é que estes filmes passam pelos conflitos envolvidos como quem anda rápido pelas brasas, ou seja, há uma decepcionante e redutora simplificação e as coisas se acertam de forma previsível e um tanto sem graça. Filmes como estes reforçam a excepcionalidade do trabalho de Ang Lee em “Brokeback Mountain” no que diz respeito a homoerotismo no cinema.







domingo, 26 de maio de 2024

“A Conquista da Honra” (2006) e “Cartas de Iwo Jima” (2006), um díptico de Clint Eastwood sobre a História, que se insere na História do Cinema.

 “A Conquista da Honra” (2006) e “Cartas de Iwo Jima” (2006), um díptico de Clint Eastwood sobre a História, que se insere na História do Cinema. 




1- “A Conquista da Honra” de Clint Eastwood

Vertiginoso Castelo com Labirintos da Ética Humana 





Uma das mais sangrentas e importantes batalhas da Segunda Guerra Mundial travou-se no Pacífico, na Ilha de Iwo Jima, pertencente ao Japão. O hasteamento da bandeira americana no Monte Surubachi em fevereiro de 1945 gerou uma das mais famosas fotos de todos os tempos, realizada por Joe Rosenthal da Agência Associated Press, premiada com o Pulitzer, onde se vê seis soldados, não só com grande apelo patriótico, mas com inegável beleza estética. Um dos homens que hastearam a bandeira foi o enfermeiro da Marinha John Bradley. Como seu filho James Bradley cresceu com esta história na qual o pai mal queria tocar, após a morte deste, resolveu escrever junto com o jornalista Ron Powers o livro “A Conquista da Honra”(“Flags of Our Fathers”) (lançado no Brasil pela Ediouro), onde esmiúçam tanto os acontecimentos da batalha como uma história emblemática da cultura americana, pouco conhecida que é a da mitologia que envolve a bandeira hasteada. Para começar, o marco histórico foi outra bandeira hasteada antes. Um general a quis para si e outra foi fincada, com um enfermeiro e cinco fuzileiros navais. Foi uma foto deste outro momento, já digamos, com pathos um tanto forjado, que correu o mundo. O que também foi escondido na época é que a ilha ainda estava longe de ser conquistada, sendo que mais um mês de lutas ocorreu com baixas significativas dos dois lados, com três dos soldados que se constituíram na encarnação de uma gloriosa vitória fake morrendo depois. Em 40 dias de batalhas morreram por volta de 7000 soldados americanos e mais de 20000 soldados imperiais japoneses.





A paciência dos americanos com os esforços de guerra estava acabando. Os recursos para tal também. Uma forma encontrada para convencê-los a comprar bônus de guerra foi um circo midiático montado, onde os três soldados sobreviventes, vinculados à foto famosa, que insuflava patriotismo, percorreram os EUA. 

O diretor Steven Spielberg detinha os direitos autorais da obra desmistificadora de James&Ron. Num encontro com Clint Eastwood ofereceu-lhe o projeto enquanto diretor e reservou para si o papel de coprodutor. Uma decisão sábia, pois as histórias que “A Conquista da Honra” (EUA/2006) nos conta se apoiam em sofisticadas camadas de flashbacks e flashforwards, numa direção de arte extraordinária, batalhas de intenso realismo filmadas em tom chegado ao sépia nos lembrando um mundo já histórico, cuidados de produção que remetem ao “O Resgate do Soldado Ryan” do próprio Spielberg e principalmente num aprofundado carinho por personagens marginais da cultura americana bem como numa corajosa desmistificação de tabus patrióticos. Estes principais elementos combinados estão mais próximos do cinema que Clint Eastwood estava praticando do que do seu poderoso coprodutor.

O enfermeiro John “Doc” Bradley (Ryan Phillipe), o fuzileiro naval de origem indígena Ira Hayes (Adam Beach) e o fuzileiro Rene Gagnon (Jesse Bradford) reagem de forma diversa à missão que recebem de fazer marketing da suposta heroicidade estampada na foto. John é mais discreto. René que a rigor não lutou, pois era um mensageiro, é bonitão e vaidoso e é o que procura tirar mais proveito de sua celebrização instantânea. Ira sente uma culpa enorme por sentir que os verdadeiros heróis não estão ali, ao mesmo tempo muita dor pelos companheiros perdidos e pelas atrocidades que teve que praticar. É em Ira, descendente de índios massacrados pelos colonizadores, que a dor da guerra bate mais forte e para suportar a maratona de hipocrisias oficiais tem de se embebedar.





Numa cerimônia com os três soldados, sorvetes com a forma da bandeira hasteada com os seis heróis são oferecidos. Ao perguntarem a Ira se ele quer creme de morango ou chocolate ele prefere o primeiro. O morango sobre o sorvete evoca sangue derramado. Um flashback de situações árduas da guerra irrompe na narrativa. À medida que os soldados sobem num monte de papel Marché, em que se mimetiza o grande feito do hasteamento, em um estádio lotado, cada um ao seu modo vai se lembrando dos companheiros perdidos e de cenas cruas que presenciaram. Em suas idas e voltas no tempo, o filme exige uma atenção não rotineira do espectador. A base da narrativa do filme vem das pesquisas que o filho de John Bradley, James, fez para entender o que de fato aconteceu com o pai. Desta forma, como bem observou Ricardo Calil no antigo blog Olha Só- No Mínimo, há uma evocação de “Cidadão Kane” de Orson Welles onde o Rosebud pesquisado, o qual se tenta decifrar, é a foto e o tempo narrativo é fragmentado ao sabor de evocações com afinidades eletivas. Calil destaca que, como na obra-prima de Orson Welles uma aura de mistério será sempre incontornável.

Em “O Homem que Matou o Facínora” (EUA/1962), uma das grandes obras primas de John Ford, a história da morte do bandido Liberty Valence (Lee Marvin), da ascensão profissional do advogado Ranson Stoddard (James Stewart) e sua disputa amorosa com o caubói enigmático Tom Doniphon (John Wayne) por Hallie (Vera Miles), se dá num contexto em que Ranson só acredita no poder das leis e Tom não acredita que se possa dispensar do poder das armas naquela cidade Shinbone, do Velho Oeste, ameaçada constantemente por Liberty, ainda muito longe de representar um marco civilizatório. Uma frase antológica do desfecho do filme possui diversas conotações: “Quando a lenda é mais forte que a verdade, imprima-se a lenda”. No filme de Ford, não há nenhum vestígio de cinismo nesta colocação. É uma constatação dos fatos ocorridos, suas repercussões e uma forma em que justiça se fez por vias transversas. A frase de certa forma pode ser também interpretada, como a essência da operação de criação das obras de arte cinematográficas de ficção. Este passo que vai da verdade estrita à lenda pode ser tido como uma transposição poética. Mimetizar simplesmente a realidade não é função da arte (pelo menos da ficção). Mesmo o neo-realismo italiano se nutria de invenções. Fellini, já distante do movimento que ajudou a criar, confessou: “Minto, mas sou sincero”. Entretanto, em “A Conquista da Honra” esta frase possui ainda outra conotação.










A farsa montada em torno da suposta força patriótica da bandeira, desnudada pelo filme, é uma lenda que se imprime em detrimento da verdade, com muito cinismo. Um dos sintomas eloquentes disto é o racismo contra o índio Ira que volta e meia dá as caras até mesmo por parte de seus superiores que o constrangem a se exibir como o herói que ele não se enxerga junto a seus dois companheiros. O destino dos três ainda vai tornar mais crítico a ética da criação desta lenda. Com sua narrativa clássica, mas ao mesmo tempo moderna, Eastwood dialoga de uma forma não imediata e melancólica com o clássico de John Ford.

Conforme operação também vista, por exemplo, no pouco visto mas muito bom “Crime Verdadeiro (EUA/1999), nos belíssimos, celebrados e magistrais “Os Imperdoáveis” (EUA/1992), “Sobre Meninos e Lobos” (EUA/2003) e “Menina de Ouro” (EUA/2004), Clint Eastwood em “A Conquista da Honra” é tremendamente solidário com seus personagens de certo modo marginais numa sociedade violenta e hierarquizada e não os demoniza, por mais desvios da ética dominante que eles cometam. A desconstrução do mito da bandeira que se prestou a patriotadas está clara no filme. Neste sentido ganha paralelos com o que foi feito nos EUA em que “Bush filho”, ainda queria mandar milhares de soldados americanos ao Iraque, mesmo que esta operação tenha se mostrado um grande equívoco, uma guerra que nunca deveria ter começado. Mas o filme não se reduz a isso. É muito mais complexo. Eastwood não está evocando algo como a loucura da guerra do Vietnã como os cáusticos filmes de Francis Ford Coppola e Stanley Kubrick, as obras-primas “Apocalipse Now: Redux” (2001) e “Nascido para Matar” (1987) respectivamente, para nos falar da loucura de todas as guerras. Por mais que nos mostre de certa forma estes vetores, não glamourizando em nenhum momento a guerra, realçando todo o inferno a que são submetidos os combatentes que perdem a vida na flor da idade, há um tom carinhoso ao mostrar as agruras e os esforços dos soldados, sem os configurar como cínicos, o que para um olhar desatento pode soar como belicismo, mas que é a rigor, uma forma de homenagear aqueles que foram peões num tabuleiro de xadrez complexo em que os que ditam seus destinos estão seguros em seus bunkers.

































Tanto o olhar de Eastwood é generoso para os que participaram da batalha nesta ilha sulforosa, tradução de seu nome, que este extraordinário diretor teve a ideia de rodar também, formando um díptico fenomenal, “Cartas de Iwo Jima” do mesmo 2006, uma versão da mesma luta, agora com atores japoneses, em japonês ( Clint dirigiu com um intérprete) para mostrar o ponto de vista do inimigo. É este filme, que angariou melhor fortuna crítica, tendo recebido o Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Não Inglesa, alguns prêmios de associações de críticos como Melhor Filme de 2006 e concorreu ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Edição de Som (que venceu) e Melhor Roteiro Original. “A Conquista da Honra” concorreu só a dois prêmios técnicos. Uma fragrante injustiça, pois se trata aqui de um díptico extraordinário. Clint Eastwood com 76 anos na época estava cada vez melhor enquanto cineasta. Com “A Conquista da Honra” constrói mais um castelo cinematográfico, onde o ser humano se vê mergulhado em labirintos éticos. Uma obra-prima do cinema contemporâneo a ser partilhada com o público, com grande emoção, desde o início em que vemos um soldado correndo, até o final dos letreiros de apresentação.

Ps. O título ideal para o filme no Brasil deveria ser a tradução literal “Bandeiras de Nossos Pais” (“Flags of Our Fathers”). “A Conquista da Honra” traz um tom triunfalista que o filme não tem.

2- “Cartas de Iwo Jima” de Clint Eastwood

Uma Viagem de Eastwood ao Outro que Mora no Inimigo 




Em “A Conquista da Honra” a foto histórica de Joe Rosenthal, com o hasteamento da bandeira americana no Monte Suribachi de Iwo Jima, desencadeava uma discussão sobre a verdade do que se considera autêntico heroísmo, por trás de um festival midiático montado por todo EUA para vender bônus de guerra. Em “Cartas de Iwo Jima” (EUA/2006), filme complementar de Clint Eastwood, rodado logo depois, no mesmo 2006, numa façanha sem precedentes na história do Cinema Americano dentre os grandes autores, temos uma maior concentração na guerra propriamente dita, só que vista pelo lado das desventuras dos japoneses. Não se pode dizer, a rigor, que seja uma visão japonesa do conflito de Iwo Jima, pois temos um diretor americano à frente de um projeto que surgiu de um argumento de Paul Haggis e Iris Yamashita, com roteiro desta última. Mas é inegável a generosa tentativa, lograda com louvor, de entender o universo do outro com o qual os americanos lutaram. O confronto com cartas do General Tadamichi Kuribayashi à sua mulher, recentemente descobertas em escavações, publicadas em livro, foram o estopim definitivo para a realização da obra.








Desta vez temos um filme que se estrutura com pausas em cartas que oficiais e demais patentes japonesas mandavam à suas famílias, quando estavam envolvidos num conflito do qual sabiam que tinham pouca ou nenhuma chance de vitória. O que podia ser feito e aconteceu, foi dificultar ao máximo a vitória dos americanos, estendendo os combates por uns 40 dias. O filme começa em 2005 quando cientistas japoneses perscrutando cavernas na Ilha de Iwo Jima, com canhões e armas enferrujados do lado de fora, descobrem algo enterrado. Não será difícil ao espectador imaginar o que seja. A emoção se mantém mesmo assim forte. O filme recua no tempo.

Em junho de 1944 chega à ilha de Iwo Jima o general Kuribayashi (Ken Watanabe) que tinha sido adido militar nos EUA e conhecia bem o inimigo com o qual se defrontaria como comandante geral nas operações na ilha. De cara descarta a ideia de escavar trincheiras na praia e investe na construção de ligações entre cavernas, de onde surpreenderiam os americanos. Suas ações tendem a se pautar pela moderação. O jovem padeiro Saigo (Kazunari Niromyia) que foi para a guerra sem convicções e forçado, com sua lúcida covardia diante de um espírito guerreiro imperial que chega a encarar o suicídio coletivo diante da derrota iminente como uma honra, é um forte contraponto ao tenente Ito (Shidou Nakamura), defensor implacável destes ideais. O tenente coronel, Takeishi Nishi (Tsuyoshi Ihara), que conquistou uma medalha de hipismo nas Olimpíadas de Los Angeles em 1932 é um outro estrategista moderado. O melancólico soldado Shimizu (Ryo Kase) é tido como um espião por seus colegas. Mas a sua melancolia tem causas que aos outros escapa e só vai ser esclarecida pelo próprio.  

Em 19 de fevereiro de 1945 ocorre o desembarque dos americanos e cenas vistas em “A Conquista da Honra” passam agora a ser mostradas por outros pontos de vista. Daí a força extraordinária deste díptico único no Cinema Contemporâneo. Os suprimentos dos japoneses vão cada vez mais se tornando escassos e as ajudas externas desaparecem, mas instigados por um código de honra imperial que a nós ocidentais soa estranho, vão de modo geral às últimas consequências, estoicamente. O curioso e fascinante é que nas cartas que mandam aos seus familiares, independentemente da patente, atos cotidianos é que são ressaltados. Uma das mais belas sequências se dá quando um jovem soldado, um prisioneiro americano bastante ferido capturado, tem uma carta sua lida e todos se dão conta que em essência os que podem ser considerados os inimigos, são muito próximos. O que aprenderam sobre os inimigos, considerados antes de tudo covardes, estava deturpado por um fanatismo guerreiro.

Em “Glória Feita de Sangue” (EUA/1957) proibido na França durante vários anos, Stanley Kubrick nos mostra um vergonhoso episódio da Primeira Guerra Mundial, uma guerra com muitas trincheiras, em que um general francês para receber mais insígnias conforme acordado com um superior, obriga seus soldados a enfrentaram uma missão suicida, sem chances de vitória na captura de um ponto estratégico, tido como o “Formigueiro”, de posse dos alemães. Os soldados avançam até certo limite. Ele por telefone obriga o capitão a atacar os próprios soldados, o que lhe é negado. Inconformado, em represália, acaba depois de negociações, para dar exemplo, levando três soldados à corte marcial, onde são condenados à morte inapelavelmente. 

Kubrick em econômicos 87 minutos, com mise en scène magnífica como é de seu estilo, com planos perfeitos, retrata os interesses, a hipocrisia e o sadismo que está por trás das ações de oficiais superiores. O coronel Dax (Kirk Douglas) tenta num tribunal precário e sumário advogar em nome das vítimas do poder que não enxerga limites. É um dos grandes filmes de guerra de todos os tempos.









Por que nos lembrarmos de “Glória Feita de Sangue” aqui? Porque por mais que os soldados de “Cartas de Iwo Jima” sejam levados a missões que de antemão sabe-se que são suicidas não há aqui o menor vestígio do arrivismo e cinismo desenfreados do primeiro filme, mesmo por parte do cruel e trágico tenente Ito, disposto até mesmo ao gesto de, com sua espada de samurai, cortar a cabeça de soldados que se recusam a morrer, incitando-os depois a explodir granadas no próprio corpo, como faz com si mesmo. O que move a todos, com as exceções como o padeiro, é um código de honra arraigado e particular, em defesa de sua pátria. Eastwood nos apresenta estes comportamentos todos, sem julgamentos e moralismos.

Nagisa Oshima no extraordinário “Furyo - Em Nome da Honra” ( “Merry Christmas, Mr. Lawrence”,1983) tenta apreender em imagens e compreender as diferenças entre Oriente e Ocidente, dentre outros temas, ao nos mostrar prisioneiros ingleses nas mãos de japoneses num campo de concentração na Ilha de Java em 1942, captando também as noções divergentes de honra entre os inimigos. Numa cena exemplar, Sargento G.Hara (Takeshi Kitano) diz ao Coronel Lawrence (Tom Conti), que em meio a muita violência, se tornou seu amigo, algo deste teor: “Por que é que você não se suicida?”. É pela admiração ao amigo que o sargento faz esta proposta. Não há nenhum cinismo. Já Oshima definiu seu filme como "O Beijo que o Ocidente deu no Oriente". 










“Cartas de Iwo Jima” é fotografado praticamente o tempo todo em sépia. O vermelho irrompe quando há sangue dos corpos feridos ou mutilados ou então o amarelo quando o fogo atinge o corpo dos soldados e ainda o vermelho da bandeira japonesa.  Sabemos de antemão que tudo ali pertence ao passado e a fotografia combina perfeitamente com o tom nostálgico pelas vidas que se foram e com o tom encantatório, pungente e simples das cartas.

Com uma estética totalmente diferente, com um colorido exuberante onde se realça a força da natureza, “Além da Linha Vermelha” (1998) de Terrence Malick nos mostra soldados americanos em batalhas contra os japoneses em Guadalcanal no Pacífico, em que a perda de vidas humanas em missões arriscadas é cada vez maior. O tom reflexivo e metafísico vem das lembranças e divagações dos soldados e oficiais americanos. Estes se angustiam por dúvidas cruciais e essenciais: há algo além da tênue linha vermelha que separa a vida da morte e que sentido há em lutar? Já em “Cartas de Iwo Jima” a força da educação militar imperial, para o bem ou para o mal, move os japoneses, com algumas exceções, a acreditar que possa haver algo além que os recompensará. Isto não quer dizer que esta entrega não seja feita com incomensurável dor. O filme ressalta este aspecto com grande pungência.








Numa época em que a guerra do Iraque se arrastou durante anos e havia até a ameaça de conflitos com o Irã, dentre vários despropósitos associados, há uma terrível miopia dos EUA em relação ao que significa o outro, o que era acirrado na Era Bush e ainda teve seus tentáculos na era Obama em que o Afeganistão ainda estava sob ocupação. Assim, por mais que Clint Eastwood diga em entrevistas que teria feito estes dois filmes, mesmo sem os acontecimentos decorrentes de 11 de setembro de 2001 (e há sinceridade no diretor), além das suas qualidades estéticas e humanas extraordinárias, “Cartas de Iwo Jima” e “A Conquista da Honra”, indiretamente comentam, inequivocamente, estes conflitos contemporâneos, acertando no que veio depois como a guerra Ucrânia/Rússia e os conflitos Israel/Hamas e palestinos e os dramas humanos que acarretam. 

Ps1 Atentemos para uma parte da perspicaz crítica de Marcelo Lyra no site Cinequanon, “O Enxadrista Clint Eastwood”:

“O filme levanta um ponto delicado dessa guerra. Em vários momentos, os diálogos entre oficiais japoneses dão conta que o Japão estava praticamente derrotado. Num deles, fica claro que, depois da batalha de Mariana, o Japão praticamente não tinha mais navios para combate e a força aérea mal era suficiente para defender Tóquio. Ou seja, ao contrário do que a história oficial divulga, as bombas de Hiroshima e Nagasaki não eram fundamentais para a vitória. Talvez não fossem sequer necessárias. Fica no ar a sensação amarga de que os EUA aniquilaram as duas cidades para testar o poderio de seu novo brinquedinho nuclear”.

Algum especialista em estratégia militar teria alguns argumentos em contrário, a favor das bombas? Eu não tenho. Digamos por redução ao absurdo que uma delas fosse necessária. Pois então pra quê a outra?... Para mim o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki são acontecimentos tão terríveis e abomináveis quanto o Holocausto. O tribunal de Nuremberg de 1946/1947 foi manipulado e insuficiente, nos valendo de eufemismos.

Ps2 Estes dois textos foram publicados originalmente no jornal eletrônico Montblãat, organizado pelo saudoso Fritz Utzeri.  Agora surgem aqui com correções, cortes e acréscimos.

Ps3 Neste 2024 o crítico de cinema de O Globo, cineasta e curador Mario Abbade organizou em três módulos filmes com Eastwood não dirigidos por ele como “A Trilogia dos Dólares” ( “Por Um Punhado de Dólares”, 1964, “Por Uns Dólares a Mais “,1965 e “Três Homens em Conflito”,1966 de Sergio Leone, colaborações com Don Siegel (como “O Estranho Que Nós Amamos”(1971)) e obras dirigidas por Clint Eastwood, onde ele atua também ou não. Filmes são exibidos no Estação Botafogo 1 e 2, alguns com cópia em película. Os módulos misturam fases da carreira. 

Clint nasceu em 31 de maio de 1930 (vai completar 94 anos), São Francisco, Califórnia, EUA. Mario Abbade vai promover uma festa de aniversário no próximo dia 31. Clint finaliza seu último filme da carreira, “Jurado Número 2”.

Ps4 O cineasta Walter Moreira Salles se espanta com algo realmente espantoso. Clint fecha, sabemos nós, com o Partido Republicano. Mas poucos cineastas americanos foram tão críticos da sociedade americana como ele, se solidarizando com os mais frágeis da sociedade como faria ainda mais depois em “A Troca” e “Gran Torino”, ambos de 2008, em mais um tour de force enquanto cineasta.

3- Fortuna Crítica e Outros Itens  

3.1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Flags_of_Our_Fathers_(filme)

3.2  https://www.planocritico.com/critica-a-conquista-da-honra/

 Crítica / A Conquista da Honra 

por Ritter Fan 15 de novembro de 2020 Ótimo 

3.3 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1602200708.htm

São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007 

Cinema - Crítica/"Cartas de Iwo Jima"

Filme encontra eco nos EUA de hoje

Inácio Araujo 

Crítico da Folha 

3.4 https://www.planocritico.com/critica-cartas-de-iwo-jima/

Crítica / Cartas de Iwo Jima 

por Ritter Fan 22 de novembro de 2020 Obra-Prima 

3.5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_de_Iwo_Jima

3.6 https://pt.wikipedia.org/wiki/Filmografia_de_Clint_Eastwood